quinta-feira, agosto 01, 2013

O vale-crime de Francisco Bosco.






O vale-crime de Francisco Bosco.
por Felipe Moura Brasil



* Francisco Bosco é autor de outra pérola: Odeio o Brasil (leia aqui)



A PM pergunta: “Quem está tentando saquear lojas está reivindicando um país melhor?” C responde:

"(...) quem está tentando saquear lojas está, precisamente, reivindicando um país melhor. E eles nos representam. São os únicos que realmente nos representam."

Bosco tem razão. Os vândalos saqueadores de lojas representam os intelectuais saqueadores da moralidade. Os primeiros são a ação dos pensamentos dos segundos.

Exemplo didático dos segundos, Bosco chega até a falar em nome dos primeiros:

“(...) aqueles que passam ao real (os ‘vândalos’) na verdade não querem isso, não querem falar a ‘linguagem’ da PM. Esse é apenas o último recurso que resta quando os recursos da realidade são todos falseados.”

Bosco sabe o que os vândalos querem. Bosco garante que vandalizar é seu último recurso. Sempre que os vândalos precisarem de um porta-voz, já sabem que podem procurar por Francisco Bosco no jornal O Globo, na editoria de saques. Só não sei se vão querer falar a sua linguagem e “passar ao real”.

Para o colunista, “a única atitude que pode tirar as pessoas das ruas e acabar com essas passagens ao real é uma atitude efetiva, vinda do Estado, na realidade”.

Isto significa que ou o Estado faz o que os vândalos exigem ou eles continuam vandalizando, com a chancela moral de Francisco Bosco.

Acusado de “defender” e “incitar a violência”, ele ainda repetiu a sua tese revolucionária, digna de uma Nina Capello, do Movimento Passe Livre [ao Comunismo], quando se explicou a um leitor:

“é justamente por achar isso um horror que estou dizendo que a única resposta possível para acabar com a violência (...) está no estado, e não é em forma punitiva, e sim transformadora.”

Preciso repetir também o que isto significa? Ou só a parte de achar um horror aquilo que ele mesmo justifica; aquilo para o que ele mesmo não quer punição?

Para uma segunda leitora, ele afirmou que não estava "incitando a violência", apenas dizendo as 3 coisas que me dou ao trabalho de comentar abaixo, porque este é o meu último recurso quando os recursos dos intelectuais são todos falseados:

“1) em certas condições só se transforma a realidade com essas intervenções no real (não há processos revolucionários feitos na base da palavra, apenas);”

Se alguém tiver alguma dúvida sobre quais são as “certas condições”, favor consultar as Leis de Bosco na versão atualizada da Constituição bosco-brasileira. Ou qualquer manual para jovens revolucionários que queiram transformar o mundo junto com ele.

“2) não se vai resolver essa questão da violência nas ruas com a legitimação da ordem (no caso, isso significa autorizar a pm a incorrer em todo tipo de ilegalidade para acabar com as manifestações vandalizantes);”

Nas Leis de Bosco – já estão com elas à mão aí? –, a legitimação da ordem significa autorizar a PM a incorrer em todo tipo de ilegalidade. Enquanto as ilegalidades da PM são condenáveis – e servem até para questionar o seu papel de manutenção da ordem –, as ilegalidades dos vândalos são justificáveis e servem para se exigir do Estado a transformação desejada.

“3) é claro que eu preferiria obter transformações estruturais sem as injustiças e as confusões decorrentes dessas passagens ao real (que não é o mesmo que ‘passar ao ato’), mas isso não me parece possível, justamente.”

É claro que Bosco preferiria não legitimar moralmente o crime, mas você sabem: em “certas condições”, não lhe parece possível evitá-lo... (Ainda mais se um dos partidos à frente das "manifestações" é o PSOL de Marcelo Freixo, para quem Bosco fez campanha e tudo.) 

A propósito: a violência, que já tinha virado “intervenções no real”, virou agora “injustiças e confusões decorrentes dessas passagens ao real”. Eis aí a linguagem e o método bosqueanos: primeiro você fala que os vândalos “nos representam”, que lutam por um país melhor, que estão apelando ao seu “último recurso” (e conquista assim a plateia vândala, que repassa seu texto por aí com uma alegria danada, segura de que está representando o país de maneira legítima); se alguém o acusar de defender ou incitar a violência, você, em vez de retirar o que disse, transforma a violência numa outra coisa cada vez mais vaga, distante, encoberta por mil e um eufemismos e malabarismos verbais, deixando claro que você mesmo a considera um horror. É o suficiente para que a plateia bocó, incapaz de entender o que você escreveu, SINTA que você é bonzinho e não quer a violência – sem atinar que não se trata de uma questão de querer ou de achar um horror, e nem mesmo de defendê-la ou incitá-la, mas de LEGITIMÁ-LA em “certas condições”, o que você em momento algum deixou de fazer. (Qualquer pessoa que frequente ou recomende uma academia de ginástica sabe que é possível endossar um ato ao mesmo tempo que se considera este mesmo ato um horror, não é mesmo? Sigamos.)

Para um terceiro leitor, Bosco ainda tentou se explicar de novo:

“em primeiro lugar eu não defendi a violência, apenas expus a sua dimensão política,”

Bosco é assim: transforma a violência em ato político e legitima o ato político de violência.

“que havia sido anulada pela pergunta retórica da pm.”

A única dimensão que havia sido “anulada” nisso tudo era a da “retórica” de Bosco, que agora exponho aqui aos meus leitores.

“e essa dimensão política não é ‘apropriada para democracia’, como vc faz parecer que eu disse, mas forçada a se colocar para que haja democracia”

A violência, que virou “dimensão política”, é “forçada” a se colocar, segundo as “condições”, conforme já vimos (e ainda veremos), das famosas Leis de Bosco.

“(sem resultados até agora, e essa é uma crítica que me pode ser feita).”

Bosco deixa você criticá-lo pela falta de resultados do vandalismo. Pela defesa dele, não, ok? 

“reconheço ainda que meu texto tinha uma ambiguidade que hoje eu teria preferido esvaziar (refiro-me sobretudo à última frase).”

A última frase é aquela que diz que os saqueadores “são os únicos que nos representam”. Só um “reconhecimento” falseado para fazer de uma frase tão unívoca uma “ambiguidade”. Mas é preciso entender Francisco Bosco: se já é difícil reconhecer um erro quando você tem certeza de que não acredita mais naquilo que disse, imagine quando você ainda insiste em dizê-lo de outras formas, não é mesmo? Era esperar demais de Francisco Bosco que ele “esvaziasse” o texto inteiro.

“e reconheço tb pertinência em algumas das críticas que me foram feitas.”

Reconhecer pertinência genericamente, sem dizer quais críticas foram pertinentes, em quais pontos e por quê, é puro jogo de cena para posar de bom moço (mui tolerante), enquanto se reafirma tudo que havia sido dito, com malabarismos cada vez mais vexaminosos. 

“seja como for, já voltei ao assunto e esclareci minha posição.”

Esclareceu nada. Reafirmou dissimuladamente a posição, repudiando todas as críticas concretas contra ela. Posição que não é de hoje, como já veremos.

“só um comentário de má-fé, como esse seu, para desconsiderar isso.”

Só um comentário que faz jus à recomendação leninista “Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é”, como este de Francisco Bosco, para acusar de má-fé o comentário do leitor indignado e ainda posar de vítima por ele não ter levado em conta o seu suposto esclarecimento, como se Bosco em algum momento tivesse deixado de legitimar moralmente o crime.

Ele ainda escreveu este trecho como introdução à resposta aos dois primeiros leitores:

“o meu post original (...) argumenta com toda a clareza em favor de uma solução dada na realidade (por meio de medidas do estado, e não da pm), e não na continuação dos confrontos violentos”

É claro que Bosco havia sido claro ao defender que a "solução" tem de vir das medidas do Estado. O que ele finge não perceber são as consequências lógicas do que defende.

Se ele diz que a única atitude cabe ao Estado e que ela não tem de ser punitiva, mas transformadora – ao mesmo tempo que diz que os vândalos “nos representam”, que lutam por um país melhor, que estão apelando ao seu “último recurso” –, está dizendo que os vândalos não devem ser punidos e que não cabe a eles parar de vandalizar, mas ao Estado fazer com que parem, atendendo às suas reivindicações. Se isto não é a legitimação moral dos crimes dos vândalos (como uma forma de chantagear o Estado através da violência), Bosco é Madre Teresa de Calcutá.

Agora vejam se Madre Teresa diria tais coisas:

“(...) o fundamental aqui é lembrar que essa violência é a resposta real à violência real sofrida pelo povo. Por isso eram inúteis, e até ridículos, os pedidos de 'sem violência', de manifestantes de classe média aos manifestantes da periferia.”

Como diria o ex-senador americano Daniel Patrick Moynihan: “Você tem direito a desenvolver uma opinião própria, não fatos próprios.” Bosco inventa que os vândalos (que ele chama de manifestantes) eram da periferia e aqueles que lhes pediam paz (o que ele acha ridículo) eram de classe média, quiçá do tipo que não sabe a dor que é sofrer a opressão estatal... Os amantes da luta de classes têm dessas coisas: moldam os fatos para caber na sua teoria. Que importa afinal se os terroristas foram arregimentados pelos militantes ou até contratados por eles para aterrorizar, sempre com a ajuda dos delinquentes de classe média que adoram um quebra-quebra, sendo que muitos de todos eles tinham folha corrida e tudo? Para quem está acostumado a legitimar crime de pobre, nada como inventar que os autores do crime que se quer legitimar são pobres. Assim fica mais fácil diluir a culpa por toda a sociedade e impedir que eles sejam responsabilizados.

Só não sei por que usar de tanto malabarismo para fingir que não disse o que disse. Advogar intelectualmente em favor de saqueadores não é nada para quem advogou intelectualmente em favor de Nem, da Rocinha, quando ele foi preso em 2011, alegando que o traficante foi “impelido à criminalidade” como tantos outros “jovens, quase todos pretos” em função das condições, desigualdades, humilhações e todas aquelas coisas que nunca fizeram a maioria dos pobres recorrer ao crime, porque, felizmente, não são leitores do Globo.

Não preciso refutar linha a linha daquele texto – em cujo trecho mais memorável ele dizia que a fala de Nem “mesmo que ela seja forjada, é autêntica; mesmo que seja mentirosa, é verdadeira” – porque Renato Pacca já fez isto na ocasião, como se pode ler aqui, de modo que, antes de acrescentar outras análises, apenas lhe corrijo um detalhe: onde Pacca diz que “O artigo [de Bosco] é quase uma justificativa do banditismo”, esqueçam o “quase”, ok?

Como escreveu o filósofo Olavo de Carvalho – com quem Bosco deveria ter umas aulinhas – muito antes disso, em 2006:

“Na escala individual a pobreza só pode ser justificação direta e determinante do crime em exemplos excepcionais e raros – tão excepcionais e raros, na verdade, que em todo país civilizado a lei os isenta da qualificação mesma de crimes. São os chamados ‘crimes famélicos’ – o desnutrido que rouba um frango, ou o pai sem tostão que furta um remédio para dar ao filho doente. Em todos os demais casos, a pobreza, se está presente, é um elemento motivacional que, para produzir o crime, tem de se combinar com uma multidão de outros, de ordem cultural e psicológica, entre os quais, é claro, a persuasão pessoal de que delinqüir é a coisa mais vantajosa a fazer nas circunstâncias dadas.

Quando o hábito da delinqüência se espalha rapidamente numa ampla faixa populacional, é claro que, antes dele, essa persuasão se tornou crença geral nesse meio, reforçando-se à medida que as vantagens esperadas eram confirmadas pela experiência e pelo falatório. Ora, é de conhecimento público que, entre a mesma população pobre, por exemplo das favelas cariocas ou da periferia paulistana, duas crenças opostas se disseminaram concorrentemente nas últimas três décadas: de um lado, o apelo do crime; de outro, a fé evangélica. Numa população uniformemente pobre, o número de evangélicos praticantes que delinqüem é irrisório. Basta esse fato para provar que a correlação entre pobreza e crime é uma fraude, um sofisma estatístico da espécie mais intoleravelmente suína que se pode imaginar.

Nenhuma ação humana é determinada diretamente pela situação econômica, mas pela interpretação que o agente faz dela, interpretação que depende de crenças e valores. Estes, por sua vez, vêm da cultura em torno, cujos agentes criadores pertencem maciçamente à camada letrada, como por exemplo os bispos evangélicos e os cientistas sociais. Os bispos ensinam que, mesmo para o pobre, o crime é um pecado. Os cientistas sociais, que os criminosos, agindo em razão da pobreza, são sempre menos condenáveis do que os ricos e capitalistas que (também por uma correlação geral mágica) criaram a pobreza e são por isso os verdadeiros culpados de todos os crimes. Essas duas crenças disputam a alma da população pobre. Não é preciso dizer qual delas estimula à vida honesta, qual à prática do crime.

Nos bairros mais miseráveis e desassistidos, qualquer um pode fazer esta observação direta e simples: as pessoas de bem repetem o discurso dos bispos, os meliantes o dos cientistas sociais (...). Quando, do alto das cátedras, esses senhores pregam a doutrina de que a pobreza produz o crime, não estão cometendo um inocente erro de diagnóstico. Estão ocultando, com maior ou menor consciência, a colaboração ativa que eles próprios, por meio dessa mesma doutrina, dão ao crescimento irrefreado da criminalidade.”

Francisco Bosco, aplicando a Nem e aos vândalos o discurso dos cientistas sociais, tanto em sua coluna no Globo quanto em sua página no facebook, oculta, sabe-se lá com que grau de consciência, a sua própria colaboração ativa ao crescimento da criminalidade.

De resto: 
Legitimar moralmente os crimes falando em termos genéricos das condições de pobreza e opressão é fácil e, sem dúvida, comove muitas criancinhas, sobretudo as universitárias. Quero ver é estipular de uma vez por todas a condição-limite abaixo da qual o crime é justificável e justo, sendo a culpa do “sistema” e da “sociedade”, e acima da qual é injustificável e injusto, sendo a culpa do próprio indivíduo que o comete. Qual é a linha divisória entre aqueles que merecem o vale-crime e os que não merecem? Se Francisco Bosco me disser, eu publico seu texto no meu Blog.

Tenho algumas perguntinhas para ajudar:

Qual é o limite da renda mensal que moralmente autoriza alguém a cometer crimes? Há quanto tempo é preciso estar nessa faixa? Só ela basta para tanto? Ou é preciso combiná-la com humilhações sofridas pelo Estado, pela polícia, pela extrema direita fascista e pela classe média que a Marilena Chaui odeia? Como se pontuam essas coisas? Quem as verifica? As violências sofridas nas mãos dos demais criminosos supostamente pobres contam ou não contam pontos? Dizer-se vítima de preconceito é o suficiente, ou é preciso comprovar as perdas e danos? Os negros e gays têm mais direitos ao vale-crime do que os brancos? Diga-me: um adolescente rico que tenha sofrido estupros do pai ou do padrasto ou de quem quer que seja também está moralmente autorizado a cometer crimes, ou a riqueza o desqualifica? Quem está mais autorizado: o riquinho estuprado, que, sei lá, ainda perdeu a mãe, assassinada por um traficante em um legítimo ato de crueldade, ou um pobre que nunca sofreu abusos sexuais e cujos pais vão muito bem, obrigado? 

Como tantos outros colunistas, o sr. Bosco jamais esclareceu esses pontos; jamais escreveu as Leis de Bosco. O motivo é simples: se o fizer, deixará clara a sua colaboração ativa para o crescimento da criminalidade, uma vez que os cidadãos aptos a receber o vale-crime conforme as condições descritas sentir-se-ão mais à vontade do que já sentem muitos deles para cometer seus crimes.

Por isso é melhor apelar genericamente ao sentimentalismo da plateia bocó do que esclarecer as premissas do próprio discurso. Ninguém quer lançar luz sobre a confusão da qual se beneficia.

Já imaginou Francisco Bosco tendo de responder por aqueles que tentariam a todo custo preencher os requisitos necessários para obter o vale-crime ou por aqueles que usariam quem os preenchesse para cometer os crimes em seu lugar, como os bandidos adultos já fazem com os menores de 18 anos, que não podem ficar presos por mais de três? Ora, para que tanta dor de cabeça se ele pode justificar tudo sem se comprometer com nada do que diz, não é mesmo?

Só um leitor muito inocente ou de má-fé pode enxergar aqui uma simples divergência ideológica entre mim e Bosco. Não é preciso ser conservador, de direita, reacionário ou qualquer coisa que o valha (até o esquerdista Miguel do Rosário reprovou a legitimação bosqueana da delinquência no caso das manifestações) para entender que Bosco – consciente ou não, admitindo ou não – é um impostor intelectual, um falsificador da realidade, um porta-voz voluntário da bandidagem, um garoto-propaganda do PSOL, um revolucionário gramsciano da pior espécie, que contribui para a inversão completa dos valores na sociedade, enquanto posa de bom moço com sua linguagem afetada cheia de "intervenções no real".

Os criminosos, por piores que sejam, só prejudicam suas vítimas diretas. O discurso feito por gente como Bosco contra a sociedade nos maiores jornais do país legitima a ação de todos os criminosos e ainda contribui para retirar os freios morais de todos aqueles que apenas pensam em cometer crimes. E quem são as principais vítimas da criminalidade? Justamente os pobres(!), que essa gente jura defender.

Muito mais importante do que a pergunta da PM, portanto, é a seguinte:

Quem está tentando, como Bosco, saquear a moralidade do país está reivindicando um país melhor?




Felipe Moura Brasil, colunista do Blog do Pim e colaborador do Mídia Sem Máscara, responde:

– Claro que não.

O artigo sobre a "injusta"prisão de Nem:
por Francisco Bosco



Não quero diminuir a importância da ocupação da Rocinha pela polícia, tampouco a política das UPPs em geral. Comemoro ambas. Mas devo começar essa coluna com uma frase estranha, e entretanto necessária para encaminhar o pensamento estrutural que deve orientar a sociedade brasileira nesse momento: embora legal, a prisão de Nem, num sentido profundo, é injusta.

Um imenso contingente de jovens, quase todos pretos (ou pretos simbólicos, como Nem), compete em condições radicalmente desiguais com jovens de classe média ou ricos; são humilhados pela polícia; têm sua cidadania esvaziada pela precariedade de serviços públicos fundamentais (saúde, saneamento etc); são quase sempre invisibilizados pelo olhar do outro; não são reconhecidos, em suma, pelo Estado, nem pela sociedade. Por que então deveriam respeitar um pacto social que não os respeita? Impelidos à criminalidade, são presos ou mortos pela polícia. Isso é justo?

Eis a diferença entre os modos como a direita e a esquerda compreendem o problema da criminalidade. Para a direita, o crime é sobretudo uma decisão da ordem da escolha moral individual. Basta ver a capa da revista “Veja” dessa semana: um personagem de novela, uma mulher de meiaidade, com macacão sujo e uma ferramenta na mão, olhar sofrido e firme, encara quem a olha. É o elogio da integridade moral individual nos trabalhadores de classes sociais inferiores Mas o que, no fundo, essa capa diz é o seguinte: há pessoas que, mesmo desfavorecidas socialmente na largada, recusam-se a quebrar as regras do jogo e trabalham obstinadamente para melhorar de vida. Logo, os criminosos são esses seres abjetos a quem falta essa grandeza moral. Conclusão: a culpa é deles mesmos, que portanto devem ser punidos com rigor pela sociedade. É fácil pensar assim, responsabilizando o outro, e não a sociedade em seu funcionamento geral (o que inclui cada um de nós, sendo essa a visão da esquerda).

Alguns dias antes de ser preso, Nem conversou com a jornalista Ruth de Aquino, da revista “Época”. A fala de Nem não traz nenhum dado inédito ou interpretação nova do problema; além disso, é possível que, nela, Nem esteja querendo influenciar a opinião pública a seu favor. Mas mesmo que ela seja forjada, é autêntica; mesmo que seja mentirosa, é verdadeira. Há duas linhas que ela estabelece. Numa delas, Nem se apresenta como uma versão do “bandido justo”, que cuida da comunidade (“Mando para a casa de recuperação na Cidade de Deus garotas prostitutas, meninos viciados”) e separa, no interior do crime, as dimensões do pragmático e da crueldade, rechaçando essa última (“Nada de atirar em policial que entra na favela. São todos pais de família, vêm para cá mandados”). Na outra linha, ele se revela um traficante lúcido, crítico da estrutura social e a favor da política de segurança do Estado: “A UPP é um projeto excelente.” E ainda: “Meu ídolo é o Lula. Ele foi quem combateu o crime com mais sucesso. Por causa do PAC da Rocinha. Cinquenta dos meus homens saíram do tráfico para trabalhar nas obras. Sabe quantos voltaram para o crime? Nenhum. Porque viram que tinham trabalho e futuro na construção civil.”

Dois pontos fundamentais foram tocados aí. Conta-se que Nem seria, na verdade, um bandido sanguinário, desses que ri enquanto toca fogo em alguém nos pavorosos “microondas” das favelas. Não sei se é verdade, mas o argumento é usado para defender que não se deve ter pena ao julgar, sentenciar, ou mesmo matar sem julgamento um criminoso como ele. A versão do bom bandido, apresentada por ele, serviria para amenizar essa visão. Seja como for, a versão “bandido sanguinário” é, justamente, aquela em que se revela melhor a estrutura social perversa de que o crime deriva: como esperar que um sujeito humilhado, desprezado, agredido, possa ser racional e calculista no crime? O seu ódio é a resposta simétrica à humilhação sofrida. Quem pode ser racional e calculista no crime são os sujeitos para quem o crime não resulta de violências sofridas no mais íntimo de sua identidade, mas aqueles para quem o crime é uma escolha possível entre outras, ou seja: banqueiros ladrões, políticos corruptos etc.

Quando Nem diz que perdeu seus homens para o PAC, a implicação é a mesma: se a sociedade oferecer emprego e cidadania, dificilmente as pessoas optarão pela vida do crime. Aí sim será legítimo falar de escolha individual moral. Os que têm alternativa digna e optam pelo crime, esses sim serão presos com toda a justiça. Muito se falou sobre o valor simbólico da prisão de Nem. Mas chefões do tráfico são presos ou mortos há décadas. Valor simbólico deve ser atribuído ao feito que consagra uma mudança estrutural, ou abre caminho a ela. Valor simbólico terão as prisões de políticos corruptos e banqueiros ladrões (aqui é preciso ser justo: a revista “Veja” contribui intensamente nesse sentido). Valor simbólico terá a entrada em vigor da lei da Ficha Limpa.

Um comentário:

O Mascate disse...

Ai...onde guardei minha caixa de Dramin...esse jornaleiro é patético.