por Maria Laura Neves (Revista Marie Claire)(*)
Nadia Murad levava uma vida simples No interior do Iraque, até que foi sequestrada pelo grupo terrorista e passou três meses sob o comando dos extremistas. Depois de ver sua família ser brutalmente assassinada, foi torturada e estuprada. Conseguiu fugir até a Alemanha, onde vive. E, desde então, passou a viajar o mundo para denunciar crimes cometidos pelos radicais islâmicos. Em entrevista à Marie Claire, ela dá detalhes de sua história de sobrevivência e militância, que acaba de lhe render uma aliada poderosa: a advogada britânica Amal Clooney (esposa do ator George Clooney)
Fazia sol e a temperatura girava em torno dos 18 graus ao meio-dia, hora em que encontrei Nadia Murad, 23 anos, no jardim do Palazzo delle Stellini, hotel onde estava hospedada em Milão. Depois de meses de negociação, consegui um horário na agenda da iraquiana, na Itália, onde ela era convidada para palestrar em um festival de direitos humanos. Com os braços e pernas cobertos, os cabelos longuíssimos, o olhar triste e os passos lentos, esboçou um sorriso ao me cumprimentar, mas não me olhou nos olhos. A apatia mostrava o quão desconfortável estava em relembrar sua história. Durante a hora que se seguiu, me contou sobre o assassinato brutal de sua mãe, irmãos, sobrinhos, o extermínio de sua comunidade, a tortura e os estupros a que foi submetida durante três meses. Antes de começar, sugeriu que conversássemos ali mesmo, sentadas na grama alta do pátio do hotel, a céu aberto. “Ela tem saudades do calor do nosso país", explicou uma amiga conterrânea que segurou a mão da jovem durante toda a entrevista.
Nascida na região do Monte Sinjar, no norte do Iraque, Nadia só fala kurmanji, o dialeto local. Ela é membro da etnia yazidi (*), um dos maiores inimigos do Estado Islâmico (EI) no Oriente Médio. Por não seguirem Alá, os yazidis viraram alvo de sua fúria. Desde 2013, o EI faz investidas contra as minorias religiosas do Iraque e da Síria porque consideram infiéis os seguidores de outras crenças. Nesses ataques, matam homens e mulheres casadas e sequestram meninas para torná-las escravas sexuais.
Yazidis: Minoria que faz parte da etnia curda, mas se diferem da maioria por sua religião, que mistura várias tradições e era praticada pela maioria dos curdos até a expansão do islamismo, durante a Idade Média. Os yazidis acreditam em reencarnação e não seguem nenhum livro sagrado. Creem que Deus colocou a Terra sob a proteção de sete divindades (anjos), sendo o principal deles Malek Taus, o Anjo-Pavão, o mesmo nome que o Alcorão dá a Santanás. Por isso, são chamados de “adoradores do diabo” pelos muçulmanos e foram perseguidos por séculos e hoje o são pelos radicais. Nos últimos anos, o EI expulsou milhares de yazidis de seu reduto, a cidade de Sinjan, no Norte do Iraque. Parte deles está recebendo treinamento bélico no Curdistão. Além do EI, sua população também luta contra a sede, a fome e o calor.
Foi o que aconteceu com Nadia em agosto de 2014, quando viu sua família ser dizimada por um grupo de criminosos. Depois de três meses nas mãos da milícia, conseguiu fugir. Hoje, vive na Alemanha, em um campo de refugiadas yazidi, todas ex-escravas do grupo terrorista. Por medida de segurança, a localização do abrigo não é divulgada, mas sabe-se que se encontra nos arredores de Stuttgart. Livre, passou a viajar o mundo dando palestras e fazendo reuniões com políticos da Europa e dos Estados Unidos para chamar atenção para o genocídio que o Estado Islâmico está cometendo contra seu povo. Mais de 5 mil yazidis já foram assassinados e 2 mil meninas ainda estão sob o domínio do grupo.
A militância lhe rendeu a indicação ao prêmio Nobel da Paz de 2016 e o cargo de embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas. Também figura na última edição da lista das cem pessoas mais influentes do mundo da revista americana Time. Em setembro, a advogada especializada em direito internacional Amal Alamuddin Clooney, mulher de George Clooney, passou a representar Nadia na Corte Internacional de Justiça da ONU, em Haia, na Holanda. Com isso, colocou o genocídio na pauta das Nações Unidas. Em uma conversa entrecortada, em que Nadia e seu intérprete, Murad Ismael, também refugiado yazidi que a acompanha em viagens, interromperam, emocionados, a entrevista algumas vezes, ela contou à Marie Claire os detalhes de sua história de sobrevivência e o que a motiva a lutar.
Confira os principais trechos a seguir. A íntegra você confere na edição que chega às bancas no dia 1º de novembro
Marie Claire - Quando conheceu o Estado Islâmico?
Nadia Murad - A primeira vez que os vi foi quando tiraram os cristãos assírios de suas terras, no nordeste do Iraque, em 2013. Muitos se mudaram para a parte curda do país, onde eu vivia.
Amal Clooney e Nadia Murad na ONU |
MC E qual foi seu primeiro contato com esses terroristas?
NM Foi quando tomaram nossa cidade. Dias antes, os vi na televisão, em uma reportagem. Fiquei com medo, estavam vestidos de preto, eram muito assustadores.
MC Seu vilarejo, Kocho, esperava ser atacado?
NM Não acreditávamos que isso aconteceria. Mesmo que eles estivessem percorrendo o Monte Sinjar [onde vivem os yazidis], não imaginávamos que nossos homens seriam assassinados e as mulheres e crianças sequestradas da maneira que foram.
MC Onde você estava quando tudo aconteceu?
NM Na noite de 3 de agosto estava em casa, dormindo. Minha mãe me acordou dizendo que o Estado Islâmico tinha atacado os yazidis no Sinjar. Começamos a nos preparar para fugir, mas não tivemos tempo. Logo chegaram e controlaram nosso vilarejo, tomaram as ruas. Kocho ficou tomado do dia 3 ao dia 15 de agosto. Durante esse tempo, o mundo inteiro sabia que havia quase 1.800 pessoas sitiadas, mas ninguém tentou nos ajudar. Nem o governo do Iraque, nem os curdos, nem o Ocidente. Além disso, os vilarejos vizinhos eram muçulmanos [e apoiadores do EI] e não nos abrigariam se pedíssemos ajuda.
MC Como foi a chegada deles?
NM Eram muitos homens, centenas, que chegaramem caminhões e escavadoras. Estavam muito armados, alguns mascarados e falavam línguas diferentes. Vieram mesmo para matar.
MC E o que se passou depois?
NM Primeiro roubaram todas as nossas coisas: dinheiro, joias, celulares e documentos. Até 15 de agosto, ficamos em casa – eles estavam rondando a cidade. Nesse dia, às 11h da manhã, nos levaram para a escola do vilarejo. As mulheres e crianças ficaram no andar de cima e os homens no de baixo. Fiquei com as minhas irmãs, minha mãe e sobrinhos. Depois, pegaram os homens e levaram para um terreno não muito longe dali, os encapuzaram e os mataram um a um. Nós vimos toda a cena da escola. Depois, pegaram as mulheres e as crianças e levaram para um centro de treinamento deles, no Solar do Sinjar.
MC Quandofoi a última vez que você viu sua mãe?
NM [suspira] Nesse dia, no Solar do Sinjar. Estava sentada na porta do centro e vi minha mãe dentro de um caminhão vermelho. Ela estava muito assustada, em pânico, porque estavam dirigindo muito rápido.
MC O que aconteceu com ela?
NM Naquela mesma noite, eles levaram para outro cativeiro, em Mosul. Algumas meninas que continuaram no Sinjar disseram que, naquela noite, eles pegaram 80 mulheres e 12 crianças e as obrigaram a andar. Depois, ouviram os tiros. Quando o Sinjar foi retomado, encontraram uma grande cova com 80 mulheres. Nós achamos que elas foram assassinadas.
MC Você foi vendida em Mosul?
NM Sim. Fiquei três dias em outro centro do EI, com minhas sobrinhas em uma sala – minhas irmãs estavam no mesmo prédio, mas não comigo. Havia marcas de mãos com sangue nas paredes do banheiro, feitas por mulheres que tentaram se matar. Como eu era a mais velha – as sobrinhas tinham 13 e 15 anos –, elas me viam como uma protetora. Quando eles [os compradores] chegaram, elas se agarraram a mim. [pausa e chora]
MC Quer interromper a conversa?
NM [suspira e enxuga as lágrimas] Não, tudo bem, vamos seguir.
MC O que aconteceu então?
NM Primeiro chegou um homem que queria me levar. Ele era muito grande, gordo, com barba e cabelos compridos. Fiquei com muito medo. Me atirei aos pés de outro homem que estava com ele, implorando que me levasse. Esse segundo homem, que era um comandante, um líder entre os terroristas, me pegou. Mas o homem grande levou minhas sobrinhas com ele [pausa]. Ele mandou eu esperar no jardim porque ainda havia 18 meninas que estavam sendo vendidas. De lá, podia ouvir os gritos de desespero delas. Naquela noite, 63 mulheres foram distribuídas aos terroristas, as mais novas tinham 9 e 10 anos.
MC Você sabe o que houve com as meninas da sua família?
NM [suspira] Não no momento. [O tradutor interrompe a entrevista para dizer que Nadia vive com uma irmã na Alemanha e que duas semanas antes ela ficou sabendo que uma de suas sobrinhas tinha morrido nas mãos do EI, ao tentar fugir do cativeiro, e que a outra ficou gravemente ferida, com o rosto desfigurado, em uma explosão. Ele pede que Marie Claire não entre nos detalhes dessa história porque Nadia não conseguiria se recuperar da emoção.]
Amal Clooney discursando na Assembleia Geral da ONU, depois da nomeação de Nadia Murad como Embaixadora da Boa Vontade, disse estar “envergonhada como ser humano” por se continuar “a ignorar o pedido de socorro” daqueles que sofrem às mãos do Estado Islâmico, nomeadamente da etnia yazidi de que a jovem iraquiana faz parte.
MC Para onde você foi levada?NM Para a casa desse comandante. Ele tinha uma família, que não conheci. Numa noite escura, ele me obrigou a me vestir e me maquiar e fez o ato [sexo]. Mas nós, escravas sexuais, não pertencíamos a eles como indivíduos. Sempre nos diziam que éramos propriedade do Estado Islâmico. Depois de nos sequestrar e estuprar, eles nos passavam para outra pessoa.
MC Você tentou fugir antes de finalmente conseguir escapar?
NM Sim, pulei de uma janela alta. Na primeira vez, fui capturada.
MC Foi castigada?
NM Sim. Eles me colocaram em um quarto escuro com seis homens, me bateram e estupraram. E continuaram praticando crimes comigo até mesmo quando estava inconsciente.
MC Como conseguiu fugir?
NM Um dos homens esqueceu a porta destrancada. Corri para longe. A maioria das casas próximas aos centros do EI é de seus apoiadores. Essas famílias têm luz elétrica, que é fornecida pelos terroristas. A casa onde pedi ajuda estava escura. Eles me abrigaram e é só por isso que estou aqui hoje. Num primeiro momento, me deram um telefone e disseram que podia ligar para quem eu quisesse. Depois, me ajudaram a atravessar a fronteira.
MC Algum terrorista mostrou arrependimento ou pena?
NM Não vi nenhum sinal de humanidade neles. Eles nos viam como as filhas dos infiéis, as escravas do califado.
MC Como você vê o fato de jovens ocidentais, de países desenvolvidos, entrarem para o Estado Islâmico por vontade própria? O que buscam?
NM Eles não sabem como é a vida dos terroristas de verdade. Vão em busca de mulheres e poder, mas não sabem que a realidade é muito dura.
MC Pode descrever como era sua vida antes do ataque?
NM Meu pai tinha duas mulheres, No total teve 18 filhos, 13 da minha mãe. Ele morreu em 2003, de ataque cardíaco. Não éramos miseráveis, éramos financeiramente pobres, mas tinamos uma vida boa e feliz. Nossa casa era feita de terra, porque não tínhamos dinheiro para comprar concreto. Alguns dos meus irmãos trabalhavam como militares e também tínhamos uma marcenaria. Minha mãe tinha uma criação de animais dos quais tirávamos alimentos.
MC Você ia para a escola?
NM Sim. Eu adorava as aulas de história e de artes. Faltava uma ano para terminar o colegial quando tudo aconteceu. Queria ser professora de história e ter um salão de beleza porque gosto muito de moda e maquiagem.
MC Você ainda tem parentes nas mãos dos terroristas?
NM Sim. Irmãs, cunhadas e sobrinhos. Também tenho irmãos que moram em campos de refugiados no Iraque.
MC Quais são seus planos para o futuro?
NM Não tenho planos. Vou continuar passando a mensagem do povo yazidi ao mundo.
(*)Entrevista publicada na Revista Marie Claire de Novembro de 2016, edição número 308.
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