quarta-feira, março 21, 2018

Que Justiça queremos?




por Jaime Pinsky(*)



Qual a função da Justiça em uma sociedade? Deve normatizar a relação entre os cidadãos, fazer cumprir as leis determinadas pelos legisladores, e interpretá-las de modo impessoal. Em uma sociedade democrática não deve privilegiar amigos, parentes ou pessoas pelas quais sinta afinidade. É uma tarefa difícil. Para realiza-la é necessário que os juízes não apenas conheçam as leis (muito complexas, em um país em que a própria constituição é um calhamaço), mas serenidade, equilíbrio, para não falar de honestidade e até desapego aos bens materiais, já que não faltam em nosso país aqueles que são conhecidos agora como corruptores ativos.

Aplicar penas é a arte de enquadrar aquele que transgrediu as leis em algum item específico do código existente. O juiz não pode criar uma lei para punir alguém, é claro, mas cabe a ele determinar qual item dela o camarada transgrediu. E isso pode fazer uma enorme diferença na pena a ser cumprida. Vejam um caso recente:

Um homem jovem atravessa a rua na faixa de pedestres na Vila Madalena. Ele é colhido por um automóvel, em alta velocidade, conduzido por uma motorista embriagada. O impacto foi tão forte que, após ferir de morte o rapaz, o carro capotou. O episódio aconteceu em 2011. Após cuidadosa deliberação (durou espantosos 6 anos) o Tribunal de Justiça de São Paulo chegou à conclusão que não se tratou de homicídio doloso, mas sim culposo. Em outras palavras, a Justiça entendeu que dirigir bêbada, em velocidade muito acima da permitida no local (o carro estava entre 60 e 90 km/hora em local onde eram permitidos apenas 30 km/hora), invadir a faixa de pedestre e matar um jovem de 24 anos de idade é algo feito sem intenção de matar. Ou seja, para os homens que interpretaram a lei, a motorista nem imaginou que conduzir uma máquina em alta velocidade, com a cara cheia, poderia ser uma ameaça mortal para seres humanos sem blindagem...

Não é necessário ser doutor em leis para saber que a motorista, ao se alcoolizar e sair dirigindo um veículo sabia dos riscos que corria e resolveu corre-los. Tinha conhecimento de que matar gente no trânsito, em nosso país, raramente é considerado crime. E porque isso acontece? Porque os juízes se recusam a dar um passo adiante para romper essa justiça de classe que “entende” mais facilmente a falha do homem ao volante do que do pedestre. Que, de resto, já está morto...

Juízes frequentemente declaram que não podem julgar a partir do clamor popular. Podemos até concordar com a ideia, mas a imagem que se quer vender é a de massas semelhantes às manadas, agindo de forma irracional, turbas dispostas a linchar sem dar ao acusado o direito à defesa. Do outro lado estariam essas figuras togadas impolutas, gentes plácidas, equilibradas e sapientes praticando a verdadeira justiça, permitindo o contraditório, sem afoiteza, garantindo o estado de direito, impermeáveis a influencias espúrias e a clamores populares. Infelizmente, não é assim que a coisa tem funcionado. Temos frequentes notícias de juízes frequentando espaços e personagens de outros poderes: são churrascos, festas de casamento, casas de veraneio, jatos executivos... Se o clamor popular pode contaminar sentenças, conversas discretas em ambientes elegantes não contaminam? E aqui chegamos à questão central, a relação entre Justiça e a Sociedade.

Quem vem antes, a lei ou a prática social? Em outras palavras, cabe à lei fazer cumprir os costumes de uma sociedade, ou cabe a ela determinar qual deveria ser o comportamento da sociedade diante de diferentes desafios? A História nos ajuda a entender essa diferença. O código de Hamurabi, era uma codificação das leis já existentes na Mesopotâmia e estas, por seu turno, retratavam as práticas da sociedade mesopotâmica. Já na Torá, o Pentateuco, que antes de se tornar livro sagrado para judeus e cristãos era um código de leis e práticas sociais, vemos algo distinto: o legislador tem a intenção de orientar o comportamento da sociedade daquela época, de estabelecer novas normas, de apresentar leis que representam um avanço nas práticas e comportamentos de então. Enquanto o Código de Hamurabi é um retrato, a Torá tem um compromisso com a ética, quer uma sociedade mais justa, pessoas mais honestas, um mundo melhor.


Esse é o dilema dos legisladores e dos aplicadores da lei. Se apenas trabalharem considerando nossas práticas sociais atuais corremos o risco de continuar achando “normal” que assassinos motorizados e alcoolizados continuem a matar. E, por que não, que ladrões instalados no poder, continuem a se apropriar de bens públicos.



(*)Jaime Pinsky - Historiador e editor. Professor Titular da Unicamp. Doutor e livre docente pela USP. Foi também professor na Unesp (Assis) e na USP. Colaborou na criação das revistas Debate & Crítica, Contexto,Anais de História e Religião e Sociedade.

Concebeu e dirige a Editora Contexto . Concebeu e dirigiu a Editora da Unicamp. Foi colaborador das editoras Brasiliense, Global e Atual. Autor, co-autor ou organizador de mais de duas dezenas de livros, entre os quais História da Cidadania, As primeiras civilizações, O Brasil tem futuro? e Origens do Nacionalismo Judaico.

Articulista do jornal Correio Braziliense. Tem colaborado em jornais e revistas como Aventuras na História, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo e tem feito conferências em instituições acadêmicas e não-acadêmicas por todo o Brasil e no exterior.

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