por Modesto Carvalhosa para O Estado de S. Paulo
Todo o cuidadoso e consistente trabalho empreendido em juízo pelo MPF está sendo destruído pela MP da corrupção, nas barbas do próprio procurador-geral da República
A Medida Provisória 703 – conhecida como a MP da Corrupção e em plena vigência desde 18 de dezembro – suscitou grande indignação na sociedade civil brasileira. Trata-se de um poderoso instrumento utilizado pelo governo petista para legalizar a corrupção no País, neutralizando os efeitos punitivos da Operação Lava Jato e inibindo a ação do Ministério Público visando ao ressarcimento dos prejuízos causados aos cofres públicos pelas empreiteiras ao longo dos últimos 13 anos e sua inabilitação.
Em sentido contrário, permite o diploma dilmista a plena contratação das empreiteiras corruptas para retomarem aquelas mesmas obras públicas que causaram bilhões de prejuízos aos cofres da União e das empresas estatais. Podem elas, também, obter novas concessões e novas obras, em todos os níveis – federal, estadual e municipal. Basta que se submetam essas virtuosas empresas a certos rituais de pajelança e de magia negra depurativas de maus hábitos, sob a pomposa e enganosa denominação de “acordos de leniência”, para que voltem ao seio generoso e cobiçoso da administração.
Tudo isso para que não mais se interrompam as relações promíscuas que até há pouco tão bem sustentaram o projeto hegemônico do Partido dos Trabalhadores.
A iniciativa de legalizar a corrupção dos governos truculentos e populistas da África, América Latina, Ásia e do Leste Europeu, tendo ainda como artistas convidados a Itália e a Grécia, é amplamente estudada na literatura política. Veja-se Bobbio (L’utopia capovolta”); Judt (Guasto é il mondo) e Bauman (Medo líquido). Mais recentemente foram publicados os estudos de M. Arnone e L. S. Bornini (Corruption – economic analysis and international law, Elgar, 2014); Henaff (Pour une anthropologie de la corruption, Esprit, 2014_ e Barbieri e Giavazzi (Corruzione a norma di legge, Rizzoli. 2014).
Estes dois últimos autores explicam: “A corrupção mais grave, ou seja, a que mais causa danos à sociedade, não é aquela que decorre da violação das leis, mas sim a que se encontra na corrupção das próprias leis”. E continuam os autores: “Nenhuma lei é violada. São as leis – elas próprias – que são corrompidas, ou seja, escritas e aprovadas a favor dos corruptos contra os interesses do Estado. Em face desse tipo de corrupção a Justiça fica desarmada, razão pela qual somente pode ela ser combatida pela política e pela cidadania”.
Evidentemente que no Brasil o combate à legalização da corrupção não pode contar com a política, como imaginam aqueles pesquisadores, na medida em que nossos festejados parlamentares estão envolvidos, até a raiz, no propinoduto que rega seus partidos e as contas pessoais deles próprios.
Essa conivência proativa de nossos amados parlamentares é ressaltada pelo diretor da força-tarefa da Lava Jato, o ilustre promotor Luis Fernando dos Santos Lima (Veja, 13/1).
Restou para a cidadania unicamente o caminho do Judiciário, visando a declaração de absoluta inconstitucionalidade dessa execrável MP 703/2015. Refletindo o clamor público contra mais essa sinistra iniciativa dilmista de legalizar a corrupção, a Associação do Ministério Público de Contas e o Instituto Não Aceito Corrupção oficiaram ao dr. Rodrigo Janot, em 22 de dezembro – quatro dias após a publicação da indigitada MP –, solicitando que em caráter de urgência o procurador-geral da República ingressasse com ação direta de inconstitucionalidade (Adin) perante o Supremo Tribunal Federal contra a MP 703, por ferir todos os princípios de moralidade pública inscritos na Carta de 1988.
O ofício descreve, um por um, os delitos constitucionais encontrados na medida provisória, enfatizando a urgência do ingresso da Adin ante o iminente perigo de serem extintas as ações de improbidade administrativa em curso envolvendo as empreiteiras, propostas pelos procuradores subordinados ao próprio Janot. A petição do Ministério Público encaminhada ao famoso procurador-geral só necessita da sua assinatura, tal o detalhamento e a profundidade dos argumentos ali contidos, que apontam a quebra de todos os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito constantes desse verdadeiro corpo de delito que é a MP 703.
Não obstante, o sr. Janot – passados 60 dias do pedido de ingresso por parte dos seus colegas do Ministério Público – até hoje não mexeu uma palha. Enquanto isso a famigerada MP 703 está em plena vigência. Basta que seja firmado entre a CGU e uma santificada empreiteira um Termo de Ajustamento de Conduta – em que foi cinicamente transformado o acordo de leniência previsto na Lei Anticorrupção – para que cessem quaisquer medidas judiciais contra ela já propostas pelo Ministério Público Federal.
Todo o cuidadoso e consistente trabalho empreendido em juízo pelo Ministério Público Federal está sendo destruído pela MP da corrupção, nas barbas do próprio procurador-geral da República, que deveria preservar o legítimo e necessário trabalho empreendido por seus subordinados no campo da reparação ao Estado não só das propinas pagas, mas dos prejuízos de centenas de bilhões embolsados pelas empreiteiras mediante as inúmeras fraudes que praticaram na contratação, na execução e não execução dos contratos que firmaram nos últimos 12 anos com o governo e suas estatais.
Comenta-se que o sr. Janot é especialista em punição seletiva: enquanto processa o ínclito presidente da Câmara dos Deputados, poupa o preclaro presidente do Senado e agora – ao que tudo indica – também poupa a magnânima presidente da República na sua missão de legalizar a corrupção. A Nação brasileira pede uma ampla e cabal explicação do sr. Janot sobre sua conduta omissiva, que está permitindo que se destrua todo o trabalho de saneamento das relações público-privadas.
Aguardamos.
Modesto Carvalhosa é jurista, autor, entre outros livros, de 'Considerações Sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas' e 'O Livro Negro da Corrupção'
Artigo extraído do jornal O Estado de S. Paulo de 13/2/2016
Fonte: O Globo
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