por Jacinto Flecha
Nunca houve governante tão esclarecido, como atesta o grande historiador Cide Hamete Benengeli. Próximo da unanimidade era o seu índice de aprovação entre os que ganham sem trabalhar, colhem sem plantar, são diplomados sem aprender ou contratados sem merecer. Resultado invejável, nunca visto na História. Qual o segredo de tanta eficiência?
Dom Quixote havia prometido a Sancho Pança o governo de uma ilha. Depois de muitas andanças, expedientes de alguns amigos tornaram possível entregar ao escudeiro o governo da ilha Barataria (Bras-ilha, para os íntimos). O grande governante não se fez de rogado, assumiu e logo designou como governanta ajudanta a Sra. Sancha Pança. Os baratarianos se divertiam com aquela cara, aquele palavrório, aquela pança, tudo realçado pelo sorriso de marketing televisivo da outra cara, cirurgicamente adaptada. A excepcional administração arrancava constantes elogios do noticiário encomendado e bem remunerado.
Servindo-se de vastíssima cultura popular, presente nos milhares de livros que nunca leu, nas centenas de bares que frequentou, nas dezenas de greves que incentivou, no único emprego pessoal (do qual escapou), ele falava a linguagem que o povo gosta de ouvir: piadas, palavrões, promessas, arroubos, provérbios.
Ah, os provérbios! Ele os enfileirava um atrás do outro, sem quê nem pra quê, num processo conhecido nas ilhas vizinhas como ensartar refranes. Muitas vezes os provérbios continham metáforas futebolísticas, assunto no qual sua competência era tão formidável quanto nas marcas de aguardente.
A profusão de provérbios tinha proverbial fundamentação doutrinária, digamos, como registram os documentos históricos de Benengeli: Provérbios velhos são evangelhos / Provérbios são arreios para qualquer cavalo / Com um provérbio se governa uma cidade / Com pouca cabeça se governa o mundo. Havia provérbios justificando malfeitos: Qualquer que seja a conduta, há um provérbio para apoiá-la / Provérbios são muito úteis, quando nada nos justifica.
A máquina governamental, bem aparelhada e lubrificada, girava lucrativamente de acordo com o comando emitido por outros provérbios: Mateus, primeiro os teus / Cada um puxa a brasa pra sua sardinha / Raposa que dorme não apanha galinha / O sol nasceu para todos, e a sombra para os espertos. Iludia-se quem esperasse tratamento equânime: Para os amigos, tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, a justiça morosa e corrupta / A lei não ajuda aos que dormem / Os ausentes estão sempre errados. Até os adversários políticos aderiam, pois pra burro enfeitado não faltam noivas.
Para a outra parte da população baratariana (aquela cujo trabalho sustentava a ilha) valiam outros provérbios reconhecidos e praticados, por isso não precisavam ser lembrados pela propaganda: A fome inventou o trabalho / A necessidade faz o sapo pular / A vida é dura pra quem é mole / Deus ajuda a quem cedo madruga. Eles trabalhavam de fato, pois bem sabiam: Saco vazio não para em pé / Casa que não tem pão, todos brigam e ninguém tem razão. E a experiência diária comprova:Maré alta eleva todos os barcos.
O modo de tratar os subalternos seguia provérbios rígidos e implacáveis: O peixe graúdo come o miúdo / Quem manda no terreiro é o galo / Manda quem pode, obedece quem tem juízo. E a reputação do governante estava muito bem protegida: Que te adianta ladrar, se estás em baixo e eu em cima? Quando patrão canta, empregado bate palmas / Pode-se enganar os mandarins, mas nunca insultá-los.
Os idosos e ajuizados, que conheciam as fraquezas da espécie humana, acendiam uma luz de advertência: Em vez de dar o peixe ao pobre, ensine-o a pescar / Não basta ter farinha e ovo, é preciso saber fazer o bolo. E mostravam que fazer caridade não é função do governo: O bem que o governo faz, faz mal feito; e o mal que o governo faz, faz bem feito / O governo faz cortesia com chapéu alheio. Outros baratarianos advertiam: Quem cabrito dá, e cabra não tem, explique de onde o bicho vem / Não dê o passo maior que as pernas / Se a bota é larga, não enfie os dois pés.
As advertências não adiantavam, pois deficiências óbvias impediam o grande governante de aproveitar este provérbio importante: Pra quem sabe ler, um pingo é letra. Recomendaram pôr a barba de molho, mas ele entendeu como raspar a barba. Também não conseguiam bater na cangalha para o burro entender; nem adiantava piscar o olho, aviso que só basta para bom entendedor.
Insensível às advertências, o casal Pança achava que ladrão endinheirado não morre enforcado. Foi aí que a porca torceu o rabo, e resultou que o grande governante deu com os burros n’água. Quanto à governanta ajudanta, já não havia solução: a vaca foi pro brejo.
Fonte: IPCO
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