quinta-feira, fevereiro 05, 2015

Quando a moeda morre, a moral e a decência morrem juntas.




Quando a moeda morre, a moral e a decência morrem juntas.
por Douglas French, quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

para o Instituto Ludwig Von Mises Brasil






Segundo o The New York Times, a atual crise de escassez e racionamento enfrentada pela Venezuela é causada pela queda no preço do petróleo. A verdade, no entanto, é que a furiosa hiperinflação que assola o país desde 2013 já havia esvaziado as prateleiras dos supermercados de Caracas bem antes de o preço do petróleo ter caído à metade.

Atualmente, com uma moeda inconversível e que ninguém quer portar, com uma inflação de preços estimada em 194% ao ano, e com rígidos controles de preços, toda a distribuição de alimentos na Venezuela foi colocada sob supervisão militar.




Segundo a matéria de capa do Times, a venezuelana Mary Noriega, assistente de laboratório, tem de ficar na fila junto a 1.500 outros venezuelanos para conseguir comprar comida "enquanto soldados armados pedem as carteiras de identidade para se certificarem de que ninguém está comprando itens básicos mais de uma vez na mesma semana". A senhora Noriega está tendo de fazer escambo com seus vizinhos para conseguir colocar comida na mesa.

Quando a moeda morre

Em um épico miniconto de Thomas Mann intitulado "Disorder and Early Sorrow" (Desordem e Dor Precoce), no qual ele descreve como era a vida na República de Weimar, na Alemanha, então sob uma das maiores hiperinflações da história, a dona de casa, Frau Cornelius, fazia algo similar ao que os venezuelanos fazem hoje para colocar comida na mesa:
O chão está continuamente vacilando sob seus pés, e tudo parece estar de cabeça para baixo. Ela só pensa na sua tarefa mais crucial do dia: os ovos, eles têm de ser comprados hoje, e agora. Cada ovo está custando seis mil marcos, e há uma quantia racionada que só pode ser adquirida neste dia da semana na mercearia que fica a quinze minutos de sua casa.


Fazendo uma análise econômica dessa história de Mann, este artigo mostra como uma intervenção governamental na economia imediatamente leva a outras intervenções. Tendo gerado escassez no mercado com suas políticas inflacionárias, as autoridades alemãs criaram novas regulações para tentar corrigir a irracionalidade que eles próprios haviam criado. O roteiro é sempre o mesmo, em todos os países: o governo cria intervenções que geram consequências inesperadas, e decide então recorrer a intervenções ainda mais violentas para "sanar" as consequências não previstas das intervenções anteriores.

Não é difícil de entender por que os alemães de hoje são tão avessos a qualquer tipo de política monetária que tenha semelhanças com uma política hiperinflacionária. A revista britânica The Economist disse jocosamente que os alemães sofrem de "fobia" em relação à hiperinflação. 

É claro. Quando um alemão se lembra de como a taxa de câmbio do marco pulou de 4,2 marcos por dólar em 1914 para 4,2 trilhões de marcos por dólar em novembro de 1923; quando ele se lembra que, em meados de 1922, um pão custava 428 milhões de marcos; e que, em novembro de 1923, um ovo custava 500 bilhões de marcos, as memórias obviamente não podem ser boas. 

[Nota do IMB: a hiperinflação vivenciada pelo Brasil no período 1980-1994 foi atenuada pelo fato de que, além do mecanismo da correção monetária (uma invenção brasileira), a classe média e a classe alta tinham acesso ao sistema bancário e utilizavam suas aplicações (como as aplicações no overnight) para se proteger da hiperinflação. Essas duas coisas não existiam na Alemanha da década de 1920. Houve muita escassez e racionamento no Brasil, mas não houve uma completa chacina da classe média, como houve na Alemanha].

No conto de Mann, com toda essa destruição monetária como pano de fundo, as pessoas tiveram de aprender na marra a como lidar com isso.

Nenhuma família podia comprar mais de cinco ovos por semana. Sendo assim, as pessoas de uma mesma família entravam nas mercearias sozinhas, uma após a outra, utilizando 
nomes falsos. Desse modo, elas conseguiam vinte ovos para a família Cornelius.

Em um assustador caso de vida imitando a arte que imitou a vida, o povo venezuelano está hoje enfrentando os mesmos obstáculos para comprar detergente, óleo vegetal e farinha (todos estes itens sujeitos a um rígido racionamento do governo). Segundo a reportagem do Times:


Todas as compras feitas pelos venezuelanos são computadas em um sistema de dados para garantir que cada consumidor não tente comprar os mesmos produtos racionados em um período menor do que sete dias.

Soldados patrulham as filas fora dos supermercados, policiais da guarda bolivariana ficam dentro dos supermercados, e funcionários públicos conferem as carteiras de identidade à procura de falsificações que poderiam ser utilizadas para driblar o sistema de racionamento. Procuram também por imigrantes com visto expirado. Um funcionário público da imigração grita alertando que transgressores serão presos.

Em Caracas, o governo não será facilmente enganado. Embora racionamento, escassez e longas filas já fossem uma rotina na Venezuela, a queda no preço do petróleo intensificou o processo. Segundo o Times:

O governo enviou tropas para patrulhar as enormes filas que se estendem por várias quadras. Alguns estados proibiram as pessoas de esperaram fora dos supermercados ao longo das madrugadas, e funcionários do governo estão de prontidão perto das portas de entrada e saída, prontos para prender qualquer um que tenta driblar o sistema de racionamento.




O sistema de saúde sofreu um profundo baque. O suprimento de remédios está simplesmente acabando. Salas de cirurgia estão fechadas há meses, não obstante centenas de pacientes estejam na fila de espera para cirurgias. Em uma clínica privada, um cirurgião conseguiu manter a sala de cirurgias funcionando porque conseguiu contrabandear dos EUA, sem que o governo venezuelano soubesse, remédios essenciais.

Thomas Mann relatou quão rapidamente o dinheiro perdia valor na República de Weimar:

Antes de os filhos chegarem, Frau Cornelius tem de pegar sua cesta de compras, sua bicicleta e ir correndo à cidade para tentar trocar seu dinheiro por qualquer quantidade de bens possível. Caso não faça isso, o dinheiro que está em sua mão irá simplesmente perder todo o seu poder de compra ao longo do dia, e não lhe permitirá adquirir nada no dia seguinte.

O The New York Times tem um fotógrafo em Caracas, e essa foto vale por mil palavras:








"As coisas irão piorar bastante porque é o petróleo o que mantém a Venezuela funcionando", disse Luis Castro, enfermeiro de 42 anos de idade, enquanto esperava na fila de um supermercado com centenas de outros venezuelanos. "Já estamos nos acostumando a enfrentar filas diariamente", disse ele, "e quando você se acostuma com algo, se contenta com qualquer migalha que lhe é oferecida".

Ao passo que a maioria das pessoas são arruinadas pela hiperinflação, há algumas que fazem fortunas. Em seus slides, o Times mostra um especulador com a mão lotada de dinheiro em Caracas vendendo, no mercado negro, sabonete, manteiga e óleo de cozinha.







Em seu livro The Downfall of Money:Germany's Hyperinflation and the Destruction of the Middle Class, Frederick Taylor escreve que "pessoas com renda média e sem nenhum acesso a produtos agrícolas ou a moeda estrangeira foram forçadas a aprender a caçar e a ficar em filas por comida — tanto porque sua renda frequentemente não era o suficiente para comprar o que queriam em um determinado dia, como também porque havia, à medida que a hiperinflação se intensificava, uma genuína escassez de comida."


Já os agricultores simplesmente não queriam trocar seus alimentos por inúteis pedaços de papel que não tinham nenhum valor. "Naquilo que rapidamente estava regredindo para voltar a ser uma economia baseada no escambo, os mais espertos, para não dizer desonestos, chegavam rapidamente ao topo da cadeia darwiniana", escreveu Taylor. "Nas áreas rurais, os médicos exigiam dos fazendeiros que os procurassem pagamento em comida".


Os trabalhadores começaram a ser pagos diariamente, e os homens, tão logo recebessem seus salários, iam correndo com suas mulheres comprar qualquer coisa que conseguissem. Após comprar os itens essenciais, eles corriam até um banco para comprar qualquer moeda forte que ainda restasse. O número de bancos aumentou substantivamente para lidar com esse novo negócio. Em 1921, 67 novos bancos foram abertos. Em 1922, mais 92. E mais 401 surgiram em 1923-24. O número de funcionários de banco quadruplicou nesse período. O Deutsche Bank tinha 15 filiais em 1923. De anos depois, já eram 242.


Não foi a pujança da atividade econômica que criou a necessidade desses novos bancos. "Os bancos estavam sobrecarregados de ordens para comprar e vender ações e moedas estrangeiras. E os cidadãos comuns, em número cada vez maior, se tornavam especuladores da bolsa".


"O colapso da moeda e o colapso da moralidade se tornaram idênticos", escreve Taylor. Não eram apenas as prostitutas que vendiam seus corpos. "As recém-desprovidas filhas da classe média educada (em alguns casos, filhos também), que agora estavam no mercado do sexo pago, estavam inteiramente disponíveis a qualquer preço — preferivelmente em troca de cigarros, metais preciosos ou moeda forte em vez de marcos de papel."


Com a inflação tendo destruído toda a poupança da classe média, as moças jovens simplesmente não tinham nenhum dote a ser oferecido a pretensos futuros maridos. "Quando a moeda perde totalmente seu valor", escreveu uma mulher, "ela destrói todo o sistema burguês baseado no matrimônio, de modo que destrói também toda a ideia de se manter casta até o casamento".


Taylor cita uma história relatada pelo escritor russo Ilya Ehrenburg sobre uma noite que ele passou com alguns amigos em Berlim. Segundo Ilya, eles terminaram a noite visitando uma família alemã em um "apartamento burguês perfeitamente respeitável". Foi-lhes oferecido limonada com um pouco de álcool e


Então as duas filhas que estavam na casa entraram na sala, totalmente nuas, e começaram a dançar. A mãe olhava esperançosa para as visitas estrangeiras: talvez suas filhas fossem do agrado das visitas, e talvez as visitas pagassem bem — em dólares, obviamente. "E é isso o que chamamos de vida", suspirou a mãe. "Na verdade, é pura e simplesmente o fim do mundo".




Tendo conhecimento de algumas dessas histórias, e olhando a corrupção moral a que foi submetida a Alemanha, não é de todo incompreensível entender fenômenos como a ascensão de Hitler. E também não é incompreensível por que os alemães de hoje não são muito tolerantes com seus vizinhos europeus que defendem políticas inflacionárias.

Países como a Venezuela e, em menor grau, Rússia e Argentina, estão em caminhos perigosos no que tange às suas moedas. Eles deveriam ler um pouco da história da Alemanha.


(*)Douglas French é o diretor do Ludwig von Mises Institute do Canadá. Já foi o presidente do Mises Institute americano, editor sênior do Laissez Faire Club, e autor do livro Early Speculative Bubbles & Increases in the Money Supply. Doutorou-se em economia na Universidade de Las Vegas sob a orientação de Murray Rothbard e tendo Hans-Hermann Hoppe em sua banca de avaliação.

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