por Natalia Rangel
De duas, uma: sempre que a ciência se dispõe a estudar as circunstâncias da morte de Jesus Cristo, ou os pesquisadores enveredam pelo ateísmo e repetem conclusões preconcebidas ou se baseiam exclusivamente nos fundamentos teóricos dos textos bíblicos e não chegam a resultados práticos. O médico legista americano Frederick Zugibe, um dos mais conceituados peritos criminais em todo o mundo e professor da Universidade de Columbia, acaba de quebrar essa regra. Ele dissecou a morte de Jesus com a objetividade científica da medicina, o que lhe assegurou a imparcialidade do estudo. Temente a Deus e católico fervoroso, manteve ao longo do trabalho o amor, a devoção e o respeito que Cristo lhe inspira. Zugibe, 76 anos, juntou ciência e fé e atravessou meio século de sua vida debruçado sobre a questão da verdadeira causa mortis de Jesus. Escreveu três livros e mais de dois mil artigos sobre esse tema, todos publicados em revistas especializadas, nos quais revela como foi a crucificação e quais as conseqüências físicas, do ponto de vista médico, dos flagelos sofridos por Cristo durante as torturantes 18 horas de seu calvário. O interesse pelo assunto surgiu em 1948 quando ele estudava biologia e discordou de um artigo sobre as causas da morte de Jesus. Desde então, não mais deixou de pesquisar e foi reconstituindo com o máximo de fidelidade possível a crucificação de Cristo. Nunca faltaram, através dos séculos, hipóteses sobre a causa clínica de sua morte. Jesus morreu antes de ser suspenso na cruz? Morreu no momento em que lhe cravaram uma lança no coração? Morreu de infarto? O médico legista Zugibe é categórico em responder “não”. E atesta a causa mortis:Jesus morreu de parada cardiorrespiratória decorrente de hemorragia e perda de fluidos corpóreos (choque hipovolêmico), isso combinado com choque traumático decorrente dos castigos físicos a ele infligidos. Para se chegar a esse ponto é preciso, no entanto, que antes se descreva e se explique cada etapa de seu sofrimento.
Cristo Morto de Andrea Mantegna |
Zugibe trabalhou empiricamente. Ele utilizou uma cruz de madeira construída nas medidas que correspondem às informações históricas sobre a cruz de Jesus (2,34 metros por 2 metros), selecionou voluntários para serem suspensos, monitorou eletronicamente cada detalhe – tudo com olhos e sentidos treinados de quem foi patologista-chefe do Instituto Médico Legal de Nova York durante 35 anos. As suas conclusões a partir dessa minuciosa investigação são agora reveladas no livro A crucificação de Jesus – as conclusões surpreendentes sobre a morte de Cristo na visão de um investigador criminal, recém-lançado no Brasil (Editora Idéia e Ação, 455 págs., R$ 49,90). “Foi como se eu estivesse conduzindo uma necrópsia ao longo dos séculos”, escreve o autor na introdução da obra. Trata-se de uma viagem pela qual ninguém passa incólume – sendo religioso, agnóstico ou ateu. O ponto de partida é o Jardim das Oliveiras, quando Jesus se dá conta do sofrimento que se avizinha: condenação, açoitamento e crucificação. Relatos bíblicos revelam que nesse momento “o seu suor se transformou em gotas de sangue que caíram ao chão”. A descrição (feita pelo apóstolo Lucas, que era médico) condiz, segundo o legista, com o fenômeno da hematidrose, raro na literatura médica, mas que pode ocorrer em indivíduos que estão sob forte stress mental, medo e sensação de pânico. As veias das glândulas sudoríparas se comprimem e depois se rompem, e o sangue mistura-se então ao suor que é expelido pelo corpo.
Fala-se sempre das dores físicas de Jesus, mas o seu tormento e sofrimento mental, segundo o autor, não costumam ser lembrados e reconhecidos pelos cristãos: “Ele foi vítima de extrema angústia mental e isso drenou e debilitou a sua força física até a exaustão total.” Zugibe cita um trecho das escrituras em que um apóstolo escreve: “Jesus caiu no chão e orou.” Ele observa que isso é uma indicação de sua extrema fraqueza física, já que era incomum um judeu ajoelhar-se durante a oração. A palidez com que Cristo é retratado enquanto está no Jardim das Oliveiras é um reflexo médico de seu medo e angústia: em situações de perigo, o sistema nervoso central é acionado e o fluxo sanguíneo é desviado das regiões periféricas para o cérebro, a fim de aguçar a percepção e permitir maior força aos músculos. É esse desvio do sangue que causa a palidez facial característica associada ao medo. Mas esse era ainda somente o começo das 18 horas de tortura. Após a condenação, Jesus é violentamente açoitado por soldados romanos por ordem de Pôncio Pilatos, o prefeito de Judeia Para descrever com precisão os ferimentos causados pelo açoite, Zugibe pesquisou os tipos de chicotes que eram usados no flagelo dos condenados. Em geral, eles tinham três tiras e cada uma possuía na ponta pedaços de ossos de carneiro ou outros objetos pontiagudos. A conclusão é que Jesus Cristo recebeu 39 chibatadas (o previsto na chamada Lei Mosaica), o que equivale na prática a 117 golpes, já que o chicote tinha três pontas. As conseqüências médicas de uma surra tão violenta são hemorragias, acúmulo de sangue e líquidos nos pulmões e possível laceração no baço e no fígado. A vítima também sofre tremores e desmaios. “A vítima era reduzida a uma massa de carne, exaurida e destroçada, ansiando por água”, diz o legista.
Ao final do açoite, uma coroa de espinhos foi cravada na cabeça de Jesus, causando sangramento no couro cabeludo, na face e na cabeça. Também nesse ponto do calvário, no entanto, interessa a explicação pela necropsia. O que essa coroa provocou no organismo de Cristo? Os espinhos atingiram ramos de nervos que provocam dores lancinantes quando são irritados. A medicina explica: é o caso do nervo trigêmeo, na parte frontal do crânio, e do grande ramo occipital, na parte de trás. As dores do trigêmeo são descritas como as mais difíceis de suportar – e há casos nos quais nem a morfina consegue amenizá-las. Em busca de precisão científica, Zugibe foi a museus de Londres, Roma e Jerusalém para se certificar da planta exata usada na confecção da coroa. Entrevistou botânicos e em Jerusalém conseguiu sementes de duas espécies de arbustos espinhosos. Ele as plantou em sua casa, elas brotaram e cresceram. O pesquisador concluiu então que a planta usada para fazer a coroa de espinhos de Jesus foi o espinheiro- de-cristo sírio, arbusto comum no Oriente Médio e que tem espinhos capazes de romper a pele do couro cabeludo. Após o suplício dessa “coroação”, amarraram nos ombros de Jesus a parte horizontal de sua cruz (cerca de 22 quilos) e penduraram em seu pescoço o título, placa com o nome e o crime cometido pelo crucificado (em grego, crucarius). Seguiu-se então uma caminhada que os cálculos de Zugibe estimam em oito quilômetros. Segundo ele, Cristo não carregou a cruz inteira, mesmo porque a estaca vertical costumava ser mantida fora dos portões da cidade, no local onde ocorriam as crucificações. Ele classifica de “improváveis” as representações artísticas que o mostram levando a cruz completa, que então pesaria entre 80 e 90 quilos.
Ao chegar ao local de sua morte, as mãos de Jesus foram pregadas à cruz com pregos de 12,5 centímetros de comprimento. Esses objetos perfuraram as palmas de suas mãos, pouco abaixo do polegar, região por onde passam os nervos medianos, que geram muita dor quando feridos. Já preso à trave horizontal, Cristo foi suspenso e essa trave, encaixada na estaca vertical. Os pés de Jesus foram pregados na cruz, um ao lado do outro, e não sobrepostos – mais uma vez, ao contrário do que a arte e as imagens representaram ao longo de séculos. Os pregos perfuraram os nervos plantares, causando dores lancinantes e contínuas.
Preso à cruz, Cristo passou a sofrer fortes impactos físicos. Para conhecê-los em detalhes, o médico legista reconstituiu a crucificação com voluntários assistidos por equipamentos médicos. Os voluntários tinham entre 25 e 35 anos e o monitoramento físico incluiu eletrocardiograma, medição da pulsação e da pressão sangüínea. Eletrodos cardíacos foram colados ao peito dos voluntários e ligados a instrumentos para testar o stress e os batimentos cardíacos. Todos os voluntários observaram que era impossível encostar as costas na cruz. Eles sentiram fortes cãibras, adormecimento das panturrilhas e das coxas e arquearam o corpo numa tentativa de esticar as pernas.
A partir desse derradeiro, corajoso e ousado experimento realizado por Zugibe, ele passou a discutir o que causou de fato a morte de Cristo. Analisou três teorias principais: asfixia, ruptura do coração e choque traumático e hipovolêmico – por isso a importância médica e fisiológica de se ter descrito, anteriormente e passo a passo, o processo de tortura física e psíquica a que Jesus foi submetido. A teoria mais propagada é a da morte por asfixia, mas ela jamais foi testada cientificamente. Essa hipótese sustenta que a posição na cruz é incompatível com a respiração, obrigando a vítima a erguer o corpo para conseguir respirar. O ato se repetiria até a exaustão e ele morreria por asfixia quando não tivesse mais forças para se mover. Defende essa causa mortis o cirurgião francês Pierre Barbet, que se baseou em enforcamentos feitos pelo Exército austro-germânico e pelos nazistas no campo de extermínio de Dachau. Zugibe classifica essa tese de “indefensável” sob a perspectiva médica. Os exemplos do Exército ou do campo de concentração não valem porque os prisioneiros eram suspensos com os braços diretamente acima da cabeça e as pernas ficavam soltas no ar. Não é possível comparar isso à crucificação, na qual o condenado é suspenso pelos braços num ângulo de 65 a 70 graus do corpo e tem os pés presos à cruz, o que lhe dá alguma sustentação. Experimentos feitos com voluntários atados com os braços para o alto da cabeça mostraram que, em poucos minutos, eles ficaram com capacidade vital diminuída, pressão sanguínea em queda e aumento na pulsação. O radiologista austríaco Ulrich Moedder também derruba o raciocínio de Barbet afirmando que esses voluntários não suportariam mais de seis minutos naquela posição sem descansar. Pois bem, Jesus passou horas na cruz.
Quanto à hipótese de Cristo ter morrido de ruptura do coração ou ataque cardíaco, Zugibe alega ser muito difícil que isso ocorra a um indivíduo jovem e saudável, mesmo após exaustiva tortura: “Arteriosclerose e infartos do miocárdio eram raros naquela parte do mundo. Só ocorriam em indivíduos idosos.” Ele descarta a hipótese por falta de provas documentais. Prefere apostar no choque causado pelos traumas e pelas hemorragias. A isso somaram-se as lancinantes dores provenientes dos nervos medianos e plantares, o trauma na caixa torácica, hemorragias pulmonares decorrentes do açoitamento, as dores da nevralgia do trigêmeo e a perda de mais sangue depois que um dos soldados lhe arremessou uma lança no peito, perfurando o átrio direito do coração. Zugibe usa sempre letras maiúsculas nos pronomes que se referem a Jesus e se vale de citações bíblicas revelando a sua fé. Indagado por ISTOÉ sobre a sua religiosidade, ele diz que os seus estudos aumentaram a sua crença em Deus: “Depois de realizar os meus experimentos, eu fui às escrituras. É espantosa a precisão das informações.” Ao final dessa viagem ao calvário, Zugibe faz o que chama de “sumário da reconstituição forense”. E chega à definitiva causa mortis de Jesus, em sua científica opinião: “Parada cardíaca e respiratória, em razão de choque traumático e hipovolêmico, resultante da crucificação.”
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