por Flávio Morgenstern(*).
Ensine seus amigos que a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa e depois como meme: socialismo é, foi e será ditadura.
Até a Folha, que só serve de mau exemplo (seja à direita, à esquerda, aos isentos ou de cima pra baixo), resolveu admitir que a Venezuela é uma ditadura. Já o caudilho Nicolás Maduro, curiosamente, costuma ser chamado de presidente, e praticamente nunca é tratado pelo título de honra de ditador. A culpa do fenômeno, entretanto, é uma única, e não parece estar no horizonte de eventos da Folha admiti-lo: chama-se socialismo.
É muito fácil abstrair fenômenos políticos de suas causas factuais e se focar em uma de várias formas de se descrever um país. No caso da Venezuela, fala-se de “ditadura” como se, não mais do que de repente, por razões e vontades particulares de Nicolás Maduro, o sistema político do país tivesse se fechado e, ao invés de vontades privadas, tudo se concentrasse nas mãos do ditador, que apenas por mera coincidência planificou a economia.
É como se fosse uma das eternas ditaduras do Oriente, ou como se o regime, após uma “crise econômica”, tivesse simplesmente “endurecido”. Não por qualquer ideário que tenha sido aplicado, com continuidade, por Hugo Chávez e Nicolás Maduro – hoje tratados como se não tivessem nada a ver um com o outro. E o bolivarianismo, que até rebatizou o país, também chamado “socialismo do século XXI”? Nenhuma menção. Parece que é mero detalhe no genocídio ocorrendo em nosso vizinho. Quem sabe até mesmo um detalhe amenizador.
Trata-se da eterna reprise da espiral descendente do “pensamento” de adolescentes que se encantam com o socialismo, a eterna sociedade dos sonhos de quem ainda pensa em vocabulário de professor de História da 8.ª série (desigualdade! direitos dos trabalhadores! os estadunidenses imperialistas!) e não na vida real de quem carca o couro para produzir riqueza e tem como inimigos a burocracia, os impostos e os nóias querendo enriquecer arrancando seu trabalho de você, que são justamente protegidos por professores de História.
Jovens são, por natureza, completamente idiotas, e nesta fase impera a vontade de trocar a autoridade familiar por qualquer autoridade externa – aliada aos delírios típicos da puberdade, como acreditar que o mundo está muito errado porque ainda não temos nossa mansão e nosso helicóptero particular, então precisamos redesenhar toda a sociedade, ou melhor, todo o cosmo para que tenhamos dinheiro sem precisar nem fazer um estágio chato no McDonald’s antes, e onde seremos considerados geniais sem insuportáveis aulas de estatística e todos nos amarão e nos desejarão sexualmente mesmo que ao invés de puxar ferro e abdicar de prazeres da carne passemos das 15h da tarde até às 3h da manhã nos empaturrando de Cheetos e moscando enterrados no sofá.
A espiral do trauma com a transformação da Venezuela em ditadura socialista atravessa os cinco estágios do Modelo de Sofrimento de Kübler-Ross, a saber: a negação, a raiva, a negociação, a depressão e, finalmente, a aceitação. O paciente passa necessariamente pelos três primeiros estágios, correndo sério risco de chafurdar no quarto. A ciência busca acelerar o processo para que o luto seja superado e se atinja finalmente o quinto patamar.
No caso do socialismo venezuelano, a esquerda passou mais de uma década firme e resoluta na fase da negação: “Imagine, a Venezuela não é uma ditadura, é uma democracia plena, quem a critica são os estadunidenses que querem uma desculpa para invadi-la e tomar o seu petróleo!”, como se a América precisasse ter invadido e tomado para si algum mercado de petróleo no planeta para conseguir o produto (alguns crêem até que a guerra no Afeganistão, país montanhoso cuja principal economia é a agricultura de subsistência, foi por causa de… petróleo).
Na fase da negação, superada recentemente pela Folha de S. Paulo, tudo é lindo, tudo pode, tudo está bem melhor na Venezuela do que por estas bandas. Para o negacionista socialista, basta pensar por termos do professor de História da oitava série (aquele de papete e pochete): na Venezuela há mais “igualdade” (como se todos receberem R$ 100 por mês, ao invés de alguns terem R$ 20 mil e outros terem R$ 100 milhões, fosse uma vantagem), que há “direitos trabalhistas” (como o direito de um sindicato mandar na empresa onde você quer trabalhar, tornando aquela empresa tão atrativa quanto o emprego do professor de História), que há “reforma agrária” (ou seja, alimentos via racionamento, prateleiras vazias e uma cenoura custando o preço de uma pepita de ouro) e que tudo o que é descrito em termos abstratos funciona no bolivarianismo venezuelano.
Na fase de negação, não há nenhum problema na Venezuela, a não ser, é claro, essa maldita oposição e os imperialistas que têm horror a alguém enriquecendo (você não sabia que a CIA existe para sair matando gente que enriquece por aí no mundo?). O socialismo continua lindo, todas as liberdades são respeitadas, tudo é melhor na Venezuela, desde que você possa descrever usando palavras de militante político, ao invés de ir ver como um país transformado em favela tem menos desigualdade do que a Suíça.
Afinal, há tanta liberdade no socialismo-que-não-é-ditadura que, mesmo com o principal canal de TV sendo fechado à força pela tirania de Hugo Chávez, grita-se que “há liberdade de imprensa na Venezuela” (prova: eu estou gritando; e bem alto! mas no Brasil).
Ninguém nunca viu um único site venezuelano de dissidência, a possibilidade de um jornal do país bolivariano sobreviver criticando o regime no país de economia controlada – e prova maior não pode haver de que tudo na Venezuela é lindo e maravilhoso, já que ninguém reclama. Se o socialista na fase de negação enfiou a cabeça num buraco e não viu, é porque não existe.
Podemos chamar a fase de negação de fase “Sou do Levante, tô com Maduro”.
Após a negação, vem a raiva, estágio no qual vários dos mais conhecidos e aguerridos socialistas-que-não-ousam-dizer-que-são-socialistas se encontram no Brasil e no mundo. A raiva pós-tragédia não precisa ter um objeto específico: o paciente está com raiva da situação, culpando Deus, os astros, o destino (a única força cósmica do Universo com senso de humor), o imperialismo, o preço do petróleo, a oposição, o Temer, os hackers russos, a crise internacional e o trágico fato de dinheiro não nascer em árvore (nem mesmo num país flutuando sobre petróleo) para sua miserável situação.
O paciente, é claro, nunca culpa sua própria escolha panaca de acreditar em retórica comunista, ao invés de desconfiar de qualquer autoridade que prometa um mundo melhor bem longe da sua realidade e estudar coisas mais difíceis do que sociologia e teoria política (estudar a taxa de preferência temporalde outputs e inputs e o cálculo econômico sob o socialismo que mostram como socialismo, grande novidade, sempre causa miséria, por exemplo).
A raiva sem objeto pós-tragédia se dá quando o paciente sente a falta de um grande ente querido tomado de si. Não é possível alguém ter acreditado na “democracia” e no bom-mocismo de Chávez e Maduro sem ter sido um fanático desesperado pronto a matar e morrer e desculpar qualquer assassinato cometido por seus caudilhos preferidos (qualquer posição intermediária, colocada inclusive por esquerdistas notórios como Carlos Fuentes, era de repúdio absoluto por “este palhaço do Chávez” e o bolivarianismo). Como tratou Maduro e Chávez e o socialismo como sua razão de ser, descobrir que o socialismo, pela trilionésima vez na história, gerou miséria, totalitarismo, perseguição, genocídio, fome, doenças e morte (uma espécie de versão anfetaminada dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse) é o mesmo que perder os melhores amigos e a própria família. A raiva é geral.
O estágio da raiva é o momento em que o esquerdista passa a ignorar a miséria que o bolivarianismo que ele defende tanto causou, e apenas ataca a esmo qualquer um que se oponha ao seu ideário desfrangalhado.
É na raiva em que o paciente infectado com socialismo na adolescência, espécie de gonorréia do século XXI (inclusive se pega nos mesmos ambientes), ignora o que defende e apenas ataca qualquer um que aponte suas falhas, mesmo que não tenha nada a ver com nada. “Vá estudar História! São os estadunidenses que querem petróleo! A oposição venezuelana é golpista e não deixa Maduro governar! Maduro foi eleito! É o preço do petróleo! Ao menos o povo venezuelano é consultado! Você só lê sites de extrema-direita e precisa se informar melhor!”
A etapa da raiva também é chamada, na ciência psiquiátrica, de Fase do Mimimi Histérico e Constantes Ataques de Pelanca. É a fase em que o paciente se torna mais pedante, chato, inconvivível e, via de regra, mais burro até mesmo do que na fase da negação.
Após a fase dos faniquitos afrescalhados, segue-se o estágio da negociação. Alguns esquerdistas chegaram a tal fase, como a Folha: trata-se de um toma-lá, dá-cá, modelo “ok, a Venezuela virou uma ditadura, mas não a chamaremos de socialista, nem diremos que bolivarianismo é sempre ditadura”, ou outros modelos que tentam sair por cima mesmo chafurdando em sangue de inocentes nas ruas. Afinal, o problema foi que Maduro acordou meio mal humorado, não que implantou o socialismo no país, que se tornou a segunda economia mais fechada do planeta.
A negociação aqui é integralmente amoral: a idéia é ainda mostrar que o socialismo bolivariano era sim uma opção válida, que não houve nada de errado em defendê-lo até o 161.º assassinado em protestos pacíficos (já 162 mortes é uma intolerância inefável), que ser de esquerda continua sendo melhor do que ser dessas pessoas que, veja você, defendem o ca-pi-ta-lis-mo tão descaradamente, e na Venezuela ao menos se tentou criar algo melhor do que este sistema horrendo da Suíça, da Austrália, do Canadá, da Áustria, da América e da Inglaterra, estes países tão miseráveis de onde todo mundo quer fugir em desespero, com as vestes do corpo e muita fome no estômago.
É também a fase de recaídas, em que, nas entrelinhas e muitas vezes descaradamente, o paciente com a doença venérea do socialismo mais quer voltar à fase anterior, sobretudo quando vê que sua argumentação encontrou algum brio público. E vale tudo, até ignorar as mortes – o socialismo abstrato, aquele da “igualdade” e do governo “dando” tudo, ainda ao menos era um norte moral melhor do que, digamos, cada um viver a sua vida, fazer trocas econômicas voluntárias e todo mundo voltar pra casa de BMW no fim do processo.
O risco recai na quarta fase: aqui o paciente com socialismo profundo pode cair na letargia catatônica da depressão. Não se trata necessariamente de estar em posição fetal chorando – posição na qual a maioria dos esquerdistas seria mais produtivo e inofensivo do que o é com as patas no chão – mas sim de um sentimento completo de desânimo ao lembrar do passado de defesa de ditaduras.
É quando o esquerdista começa a fazer textões, artigos, colóquios e até livros com temas como “A crise da esquerda e a busca de novos paradigmas anti-imperialistas” e outros nomes chiques para “Fizemos merda de novo, alguém nos interne porque PQP, viu”. É a fase em que é preciso mudar de assunto desesperadamente (já fizeram com Stalin e Mao, e isso já nas décadas de 70 e 80) para não admitir que anteontem estavam defendendo gente que faz Hitler parecer um principiante.
É quando o infectado, o socialista de butique, parte para a mais velha tática dos defensores de coisas que passam a pegar mal com a galera: trocar os termos. Maduro deturpou Marx, eu não sabia de nada, Maduro é na verdade de extrema-direita, ser de esquerda não tem nada a ver com isso, olha, por que falar da Venezuela com tanto país precisando da nossa ajuda, há muitos interesses por trás de tudo, mas e o Cunha etc. Já faz tempo que, dos defensores do socialismo, mal o PCdoB admite o termo, preferindo diluir em palavras que encantem melhor os trouxas (“direitos”, “igualdade”, “democracia”, “povo” e por aí vai).
Se o paciente do luto normal o faz por não agüentar mais a perda, o socialista o faz porque já não pega bem com a turminha bancar o revolucionário da patota. É tão somente uma questão de opinião pública, de galgar o estrelato no microcosmo, de defender com coragem inumana o que estava todo mundo defendendo até o vídeo viral de WhatsApp da semana passada. De repente, até discutir a série C do campeonato Amapaense ou algum filme B perdido da década de 50 com uma atuação ma-ra-vi-lho-sa vira um programação mais atraente do que falar do que você passou os últimos 15 anos defendendo e precisa da sua defesa mais do que nunca neste momento crucial.
Por fim, alguns raros sobreviventes conseguem se elevar ao último patamar da aceitação, quando o ex-pubertário socialista passa finalmente a aceitar a realidade, levanta a cabeça, arruma um emprego, descobre como a vida é mais complexa do que um discursinho de oitava série (como se você tivesse aprendido alguma coisa que presta na oitava série) e admite o que só adultos admitem: que passaram anos a fio falando bosta.
É a fase em que o esquerdista admite que, afinal, socialismo sempre seguiu o mesmo roteiro de Vale A Pena Ver De Novo, que esse papo de “imperialismo” e “estadunidenses” não consegue explicar por que caceta o embargo cubano seria o culpado pela miséria na ilha particular da família Castro (quer algo mais anti-imperialista no mundo?) e que, dãã, só é possível haver igualdade econômica com uma extrema desigualdade de poder político, como já o afirmara Joseph Sobran.
É o patamar libertador em que admitimos que aquele professor de História tinha como grande autoridade dizer que nossos pais eram caretas (eram mesmo, mas e ele, que usava papete e pochete?!), que acreditamos em tudo quanto é jornalista (até parece que lemos Marx) só porque era mais fácil do que ler um livro com conceitos difíceis como “derivativos” ou entender que a taxa de juros é a soma acumulada de todas as taxas de preferência temporal individuais acumuladas (sério, passamos décadas de vida criticando taxa de juros sem saber o que raios é isso) e outras barbeiragens.
Na verdade, tal patamar seria facílimo de ser alcançado, não fosse um único detalhe: nós perdemos amigos ao atingi-lo. Temos de nos livrar das amizades da escola, temos de virar a casaca contra aqueles que pareciam os mais descolados por serem os “preocupados com o social”. Eles são o único motivo para tanta gente continuar sendo de esquerda depois da adolescência – porque nada no mundo aponta a esquerda como mais certa em assunto nenhum. É a peer pressure política: estar acompanhado e errado, ou certo e sozinho?
A aceitação de que socialismo é totalitarismo é óbvia: não adianta pregar ditadura do proletariado e depois reclamar que o negócio virou ditadura. Era o que você pregava, tonto. Basta agora seguir o caminho de Eric Voegelin, Thomas Sowell, David Horowitz, Leszek Kołakowski, Edmund Wilson, Yuri Bezmenov, Peter Hitchens, Ion Mihai Pacepa, Irving Kristol, Whittaker Chambers e tantos outros: admitir que esteve enganado.
Não dói, bem ao contrário: é se livrar de dores quase sem custo. Se você conhece algum amigo ainda infectado pela variação adolescente do esquerdismo, o socialismo, convide-o a ler e estenda a mão para ele em direção à cura. O medo da falta de amigos é basicamente a única razão para ele ainda não ter atingido o estágio da aceitação da miséria socialista.
(*)Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs" (ed. Record). No Twitter: @flaviomorgen
Fonte: sensoincomum.org
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