por Flavio Morgenstern
Usando uma linguagem metonímica, a moda agora é comparar "refugiados" islâmicos justamente com judeus, que fugiram deles por toda a história.
Imagine que várias pessoas se mudarão para seu bairro. Elas são machistas. Elas espancam mulheres. Elas odeiam judeus, negam o Holocausto e admiram Adolf Hitler. Elas são homofóbicas, acham que homossexualismo é doença e pecado, pensam como na Idade Média e que gays devem ser mortos. Também são racistas: acham que algumas raças e etnias devem ser extintas pelo bem delas. Você aceitaria receber tais pessoas? E se elas fossem os assim chamados “refugiados islâmicos”? Pois eles são praticamente idênticos.
A linguagem molda o pensamento, e a forma como algo é descrito muda nosso apreço a ela. Aliada a ideologias de moda, que se julgam profundos pensamentos estudados e sopesados, palavras como “feminismo” e “islamofóbico” convivem no mesmo discurso, sem que metade do Ocidente pareça atentar para a impossibilidade lógica, factual e existencial da convivência entre feministas e muçulmanos – apenas para se ficar no exemplo mais óbvio dos dias que correm.
Dessubstancializadas as palavras, que funcionam apenas como gritos de guerra e mandos de ordem para determinados segmentos políticos, os usuários da língua apenas podem preencher os sons que emitem dos vocábulos com analogias a realidades mais fáceis de serem absorvidas – via de regra fenômenos gigantescos ou ínfimos.
É o que estudiosos do fenômeno chamam de “linguagem metonímica”, que só faz referências às próprias impressões que pretende causar. Para entender qualquer evento complexo na política moderna, a regra de ouro é uma comparação alquebrada com o nazismo.
A ordem executiva assinada por Donald Trump, que instala um veto de entrada a 5 países muçulmanos em voga por serem contumazes exportadores de terroristas foi um destes eventos em que os comunicadores, que deveriam informar algo ao público além do que ele já presumiria saber, preferem apenas reduzir algo difícil a um referencial facilmente digerível, que cause horror às massas irrefletidamente.
Um problema óbvio surge: os assim chamados “refugiados” islâmicos não se parecem nem um pouco com os judeus que estavam sendo perseguidos e dizimados por Adolf Hitler na Alemanha nazista. Exatamente o oposto: como qualquer criança de 10 anos assistindo a um noticiário pela primeira vez, eles estão exatamente do lado oposto, caçando judeus ao lado dos nazistas. Comparar “refugiados” muçulmanos logo a judeus é algo que deveria fazer qualquer um passar vergonha pela ignominia por anos sob risadas colossais, como a mamona de Requião. No entanto, é a regra hoje para se parecer alguém inteligente.
A substância dos fatos é bem diferente. Adolf Hitler era um socialista que levou a cabo uma forma de socialismo nacionalista, o Nazionale Sozialismus, ou nazismo. Apesar de o nacionalismo estar fora de moda no mundo e o caráter socialista do Terceiro Reich ser comumente ignorado, sua distância do modelo marxista-leninista se dava pelo conceito de Estado-Nação, algo quase exógeno à Alemanha: o poder do povo, incluindo sua “raça”, deveria se concretizar em um Estado forte com líder plenipotenciário, em um centralismo absoluto.
O inimigo que era o bode expiatório comum para ser culpado pelos defeitos europeus na época (inclusive por socialistas) eram os dois povos sem pátria a vaguear pelas nações: os ciganos e os judeus. Com a diferença óbvia de que os judeus prosperavam onde quer que parassem, dominavam a arte do comércio, da poupança e da especulação e até hoje são líderes em disciplina e patentes. Adolf Hitler, em um de seus discursos mais famosos na Hofbräuhaus em Munique e quase nunca traduzido, explica “por que somos anti-semitas” usando o velho bode expiatório do judeu, povo pária “sugando” os alemães, exigindo uma pátria livre de elementos “estrangeiros”.
Para o palpiteiro de 140 caracteres desconhecedor de qualquer estudo sério sobre o totalitarismo nazista, isto pode parecer um nacionalismo “simples”, modelo “meu país é melhor do que o seu”. Não é preciso avançar mais do que 10 páginas da leitura de Mein Kampf para testemunhar Hitler usando expressões francesas, elogiando arte italiana ou enxergando nos “nórdicos”, até então países pobres e rurais, seu grande modelo. O alvo de Hitler são elementos não-“arianos” em território alemão.
Sem entender isso, é praticamente impossível entender um dos eventos mais importantes da II Guerra Mundial, a Campanha Norte-Africana, quando a o Terceiro Reich operou na Líbia, Egito, Marrocos, Argélia (Operação Tocha) e Tunísia (Operação Tunísia), com efeitos que perduram até hoje. Foi tema de diversos filmes, como O poder de um jovem. O próprio Fusca foi projetado para ser bem usado no deserto (com poucos empurrões poderia ser “descapotado”). As forças Deutsches Afrikakorps foram atuantes para enfrentar o Common Wealth britânico na África, espalhando valores como representatividade popular e direitos individuais, tão caros à Inglaterra. Os planos de Hitler para a África incluíam um império colonial indo de Gana a Camarões.
Contanto que cada etnia ou, como Hitler as chamava, cada “raça” ficasse dentro de seu cercadinho, com uma potente Alemanha militarmente expansionista como “eixo” de influência no mundo, viveríamos sob o Tertium Imperium Germanicum.
Adolf Hitler: #refugeeswelcome
Seu alvo primordial eram judeus. Quem mais odiava judeus no mundo, apesar de o anti-semitismo ser corrente por séculos na Europa, era o povo que queria substituir o monoteísmo abraâmico de Israel por um outro modelo: os muçulmanos.
Com o esfacelamento do Império Otomano na Primeira Guerra, que o Estado Islâmico hoje tenta reviver, os territórios em disputa lutam pela criação também de estados soberanos, agravados pelas migrações e reformulações decorrentes da Grande Guerra. Surge um movimento que, mirando a mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém, a primeira tentativa islâmica de aniquilação completa dos judeus do mundo, reivindica um vasto território chamado Palestina, e inicia um movimento de “Nacionalismo Palestino”, para criar um novo país exatamente onde está a Israel histórica, mas livre de judeus.
O líder do Nacionalismo Palestino era Amin al-Husseini, o “Grande Mufti de Jerusalém”. Apesar de usar um título dado pelo Império Britânico, sua ideologia era “anti-colonialista”, o que se espalhou pelo mundo a partir da educação centralizada na ONU e foi a única aprendida no Brasil desde então. Era anti-sionista, o movimento que reclamava aos judeus um país próprio onde Israel sempre existiu, e contrário às leis “imperialistas” do Common Wealth, que sempre garantiram que o povo não sofresse com tiranos.
Durante a Segunda Guerra, se refugiu na própria Alemanha nazista, colaborando com o Terceiro Reich fazendo transmissões via rádio e recrutando aos alemães soldados bósnios muçulmanos para a Waffen SS, formando a 13.ª Divisão de Montanha da Waffen SS Handschar, uma tropa de elite muçulmana-nazista para assassinar judeus e acelerar o Holocausto. Handschar (bósnio Handžar, árabe khanjar, خنجر) é a cimitarra turca do Império Otomano.
Em troca, em encontro com o próprio Adolf Hitler, al-Husseini demandou ajuda para destruir Israel, estabelecendo uma independência árabe e o reconhecimento de um “Estado palestino” no lugar de Israel, conforme profecia islâmica. Em fevereiro de 1941, após encontro com Benito Mussolini, al-Husseini faz com que Alemanha nazista e Itália fascista reconheçam o “direito” de os estados árabes resolverem a “questão judaica”.
Em novembro, se encontra com o próprio Adolf Hitler, após conversas com Ernst von Weizsäcker e Joachim von Ribbentrop. Hitler estava ocupado com a guerra e com o “problema judeu”, mas prometeu apoio ao nacionalismo palestino contra judeus protegidos pela Inglaterra. A Alemanha nazista se foi, mas a retórica “anti-colonialista” e o reconhecimento a fórceps de uma suposta “Palestina”, que não permite nem assentamentos judaicos (ou seja: judeus morando e existindo pacificamente) permanece, transmitida da Alemanha nazista diretamente para a ONU.
Essa história não parece ser extremamente conhecida fora da Alemanha, e não parece que passou nas aulas de História dos jornalistas e das pessoas gritando que “Aqui se aceita refugiados!” no aeroporto JFK, em Nova York, após o anúncio de Donald Trump.
O mundo islâmico sempre odiou judeus, mas por motivos religiosos, enquanto a Europa odiava judeus por motivos econômicos (eram a burguesia que enriquecia com comércio, destruindo a antiga aristocracia rural) e nacionais: eram um povo “estranho”, que não comungava da mesma missa e não possuía os mesmos hábitos. Os judeus, na Europa, se fechavam em guetos: não tentavam impor o judaísmo aos países europeus. Eram, sim, verdadeiros refugiados: perseguidos desde a Antigüidade por impérios poderosíssimos (sua história começa com um Êxodo), agiam entre os seus, sabendo-se sempre ser uma minoria onde quer que estivessem.
Já muçulmanos de diversos matizes odeiam judeus por enxergar neste diminuto povo a Eterna Aliança Abraâmica que rivaliza com sua narrativa de um mundo sob o islamismo. Seu método de conquista é, justamente, a imigração (sua história começa com uma, a Hégira, que marca o início do calendário islâmico). Judeus, e israelitas, possuem mais Prêmios Nobel per capita do que qualquer país do mundo. Não se sabe de qualquer coisa boa ao mundo advinda do mundo islâmico recente. Há mais livros traduzidos para o espanhol no último ano do que livros traduzidos para o árabe nos últimos mil anos.
A história da invenção de uma “Palestina” por Amin al-Husseini é repetida com Hassan al-Banna, criador da Irmandade Muçulmana. Ou com todos os ditadores que, islamicamente, governam os países islâmicos do Oriente Médio. A maior parte não reconhece palestinos. Países ricos, como os Emirados Árabes Unidos, proíbem “refugiados” sírios. Quase todos proíbem judeus, sob penas que variam entre decapitação e enforcamento. O Hamas e o Irã negam o Holocausto, e prometem a destruição de Israel. O Hezbollah é abertamente pró-neonazismo, inclusive praticando a saudação nazista.
Em uma reportagem recente da Foreign Affairs vimos como Adolf Hitler é visto fora do mundo ocidental, ao alcance de redes sociais e canais de TV. Seu livro Mein Kampf é vendido normalmente em países islâmicos, e geralmente Hitler é visto como um grande líder que teve de lidar com o “problema judeu” e finalmente lhe deu uma solução. Com o fim dos direitos autorais sobre a auto-biografia de Hitler, a maior preocupação da Alemanha é com o público interessado no livro: Mein Kampf é vendido sobretudo para os “refugiados” islâmicos na Terra de Merkel.
Países como a Síria (na lista do veto de Donald Trump) e o Líbano são casos curiosos: fazendo parte do Levante, compreendem entrepostos comerciais que geraram uma das regiões mais ricas do planeta por milênios, enquanto impérios ruíam ao seu redor. Como tal, compreendiam uma variedade de etnias, religiões e povos em seu território. Assolados por guerras civis “anti-coloniais”, quando ditadores anteviam a possibilidade de aniquilar seus elementos “estranhos” ao islamismo e aplicar a shari’ah, geraram fugas em massa de sua população para países como o Brasil.
Cidades como a São Paulo, de Paulo Maluf e Fernando Haddad, possuem fartos elementos sírios e libaneses, da esfiha ao hospital de ponta Sírio-Libanês. É o prato cheio para analistas de meia pataca crerem que se deva aceitar “refugiados” islâmicos, afinal, São Paulo se enriqueceu com sírios e libaneses atuando juntos. Poucos parecem interessados em algo além de palavras ocas para verificar que são cristãos sírios e libaneses que vieram a São Paulo, justamente fugindo dos agora chamados “refugiados” que querem implantar a shari’ah.
Sem conhecer nada disso, o mais comum é ver jovens chamando todos que discordam deles de “nazistas”, comparando “refugiados” islâmicos com judeus, enxergando “anti-semitismo” na direita política e, naturalmente, negando a Israel o direito de existir, porque a “Palestina” está sofrendo com a existência de judeus.
Mas basta usar uma palavra agradável aos ouvidos dominados por expressões chocantes, como “fascista” ou “homofóbico”, cheias de -istas e -fóbicos, para atender ao grito apontando “islamofóbico!” e passar à boa e velha comparação com nazistas, tão somente porque as palavras parecem (“refugiados sírios fugindo de guerras!”), sem saber absolutamente nada da realidade destes povos.
Certamente, se alguma pessoa gritando que “refugiados são bem vindos” e postando fotos felizes ao lado de páginas sobre feminismo e criticando homofobia no Instagram ouvisse falar que está vindo uma horda de machistas, homofóbicos, racistas, anti-semitas e teocráticos que negam a Teoria da Evolução às suas calçadas, estariam todas exigindo que Donald Trump as varresse do mapa sob forte tortura.
Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs" (ed. Record). No Twitter: @flaviomorgen
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