por Thiago Kistenmacher(*)
Uma hora antes da virada do ano eu lia as primeiras páginas de um livro que ganhei de presente, Memórias, a menina sem estrela, de Nelson Rodrigues. O trecho que me chamou muito a atenção foi escrito há exatos cinquenta anos e dizia:
“Só então percebo o monstruoso engano auditivo. Onde é que meus ouvidos estavam com a cabeça? Ah, uma incorreção acústica pode levar o sujeito a sair por aí derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas”.
Nada mais atual. E como estamos entrando em 2017, pensei que tal frase pudesse chamar nossa atenção para um problema que tem piorado gradativamente, quer dizer, o uso distorcido e, portanto, indevido das palavras. Não há dúvidas que uma incorreção acústica, interpretativa, pode resultar em barbáries. Interpretar palavras e conceitos à luz de ideologias nefastas não passa de uma escolástica politicamente correta cuja conclusão geralmente culmina em ações extremistas. Em 2016 vimos muito disso, um fruto da divindade pós-moderna idolatrada em templos seculares.
As palavras podem não mais estarem guilhotinando marias antonietas, mas continuam espalhando o ódio, destruindo reputações e infernizando a vida daqueles que discordam dos significados atribuídos a elas pelos autoritários. Os fuzis só puderam perfurar os fuzilados porque antes dos primeiros disparos o carregador ideológico já havia sido municiado. Dito de outra forma, mais do que com qualquer outra coisa, é com palavras que a violência política e suas agressões são legitimadas. O mais superficial discernimento constata que a desvirtuação de palavras e conceitos é uma arma de grosso calibre indispensável e desde sempre disponível no paiol dos revolucionários.
Para darmos um exemplo, hoje qualquer atitude masculina pode ser entendida como machismo. É claro que a priori muita gente não é a favor de machismo algum, no entanto, é aqui que reside o problema: o que significa machismo? No meu entendimento, machismo, em suma, é ser grosseiro com a mulher, espancá-la, oprimi-la, cercear sua liberdade. Mas na percepção de uma feminista, machista é aquele que admira as curvas do corpo feminino, é aquele que não está preocupado com o sexo politicamente correto; machista é aquele que sabe dar um tapinha na hora certa, ainda que isso jamais aconteça no calor de uma discussão.
O que é ser conservador, por exemplo? A esquerda, valendo-se do discurso militante, convencerá os menos avisados que o conservadorismo não passa de uma concepção de mundo retrógrada e autoritária, ainda que boa parte dos conservadores esteja a mil anos luz do fascismo defendido pela esquerda radical. Desse modo, se um professor universitário ousar dizer que se vê como um conservador, ele estará correndo o risco de ser visto não por aquilo que defende, mas pelo que a esquerda diz que ele defende. O resultado? Suas aulas serão atormentadas e sua imagem, distorcida como as próprias palavras.
Falar que ficou com “pena” de um deficiente físico não mais significa lamentar a situação na qual se encontra seu semelhante, pois isso pode significar que você é preconceituoso, pensa ser superior e é um “capacitista”; dizer que prefere as loiras significa preconceito com as negras; dizer que prefere as negras é enxergá-las como objeto sexual; se apreciar as duas, é tarado; afirmar que gosta dos Estados Unidos não significa admirar a prosperidade e liberdade do país, quer dizer que você é um defensor do imperialismo e odeia árabes. Ser contra cotas, na visão da esquerda, é ser racista; ser racista, na imaginação dos mesmos obcecados, não é só quem odeia negros, mas quem sugere que o movimento negro possa estar repleto de sectários. Na perspectiva esquerdista e adulterada, o democrático é autoritário e o autoritário, democrático; o tolerante é chamado de fascista e o fascista visto como tolerante. Enfim, é dessa forma que a deturpação linguística prossegue sua marcha ceifando a liberdade de discurso e avançando em direção daquilo que George Orwell alertou na distopia intitulada 1984.
Se não quisermos que o autoritarismo ganhe ainda mais força agora em 2017, é necessário não só ficar de olho nas bandeiras vermelhas que tremulam nas ruas, mas também nos discursos e, principalmente, na ressignificação que as palavras sofrem quando submetidas às perversas ideologias. Nota-se a bizarrice quando até mesmo um liberal é chamado de fascista…
Se fôssemos acrescentar algo na frase de Nelson citada no início, poderíamos dizer que sim, que “uma incorreção acústica pode levar o sujeito a sair por aí derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas” e que, além disso, a distorção das palavras frequentemente utilizada pelos sectários políticos também pode levar o sujeito a sair por aí arruinando prestígios e fixando rótulos injustos e injustificáveis em pessoas que simplesmente não concordam com eles.
Penso que tão importante quanto a atenção para com as novas paranoias ideológicas, é a atenção para com aquelas que já estão funcionando a todo vapor. Espero que em 2017 o trem esquerdista descarrile, ou que pelo menos isso aconteça com alguns de seus vagões carregados de má-fé.
(*)Thiago Kistenmacher
Thiago Kistenmacher é estudante de História na Universidade Regional de Blumenau (FURB). Tem interesse por História das Ideias, Filosofia, Literatura e tradição dos livros clássicos.
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