Fala-se muito da mãe quando o assunto é aborto, e com razão, já que ela é a principal responsabilizada pela vida do bebê. É a mãe quem carrega a nova vida em seu ventre e é a mãe quem possui laços estabelecidos com a sociedade por meio de sua biografia e de seus relacionamentos. Contudo, não há como esquecer a presença do feto, por mais abstrativo que seja o pensamento daquele que se debruça sobre essa situação.
Com certeza, aborteiros e abortistas evitarão falar muitos detalhes acerca da realidade e da perspectiva do feto, pois tal excesso de atenção poderá levar todos a perceberem uma incontornável realidade: o feto é, de fato, uma vida humana. Lá estão células, genes, ossos, músculos e, é claro, a capacidade de interagir com o ambiente de diversas formas.
Normalmente chamarão o feto por nomes bem técnicos e desumanos como produto da gravidez, concepto ou consequência indesejada. Chamar o feto de criança, ser humano ou, horror, admitir que é uma pessoa, trará imenso desconforto, oferecendo à consciência o choque de realidade que precede a capacidade de analisar um assunto com inteligência.
Para que imaginemos o quanto a apreensão de tais realidades pode mexer com o imaginário de alguém, basta nos lembrarmos da história de vida do rei do aborto, o médico Bernard Nathanson. Ao observar a reação do feto a um abortamento por meio da ultrassonografia, o médico aborteiro ficou profundamente perturbado. Aquele que não passava de uma abstração, um pequeno refugo a ser removido sem maior preocupação, assumira rapidamente a posição de paciente a ser cuidado. Seus movimentos, suas reações e sua face ganhavam duas dimensões no aparelho e três dimensões na imaginação.
Para os abortistas, é melhor não falar mesmo do feto, não entrar muito no mérito da questão e no excesso de detalhes biológicos e sociais. Quanto menos conhecimento, mais fácil será fingir que o pequeno homem, ou a pequena mulher, não passa de um alienígena distante e desconhecido.
Um dos aspectos que devem ser levados em conta é uma capacidade bem humana dos fetos: a possibilidade de sofrer. Por mais que tal sofrimento possa ser silencioso, é impossível imaginar com absoluta certeza todas as implicações e consequências da dor imposta ao feto. Porém, o que hoje já possuímos de conhecimento acerca da misteriosa vida do feto e de sua capacidade de sentir?
Há um consenso de que fetos podem sentir dor ao atingir cerca de 20 semanas após a concepção, isto é, aproximadamente na idade de 22 semanas de gestação. Um pouco antes disso, já estão presentes as estruturas necessárias para perceber o estímulo doloroso e para transmiti-lo ao cérebro. Com 18 semanas após a concepção o eletroencefalograma já capta atividade elétrica no cérebro, indicando a integridade dos circuitos neuronais cortical e talâmico.[1]
O córtex cerebral, sede física de nossa capacidade intelectiva mais complexa, começa a desenvolver-se às seis semanas após a concepção, enquanto o tálamo, uma parte do cérebro responsável pela sensação dolorosa, começa a desenvolver-se às oito semanas.
É importante lembrar que julgamos a situação tendo por base o aparato neuronal do adulto, conhecido por nós inclusive da perspectiva fenomenológica. Mas não há como garantir com plena certeza quais outras interações entre feto e ambiente são possíveis antes do desenvolvimento das estruturas neuronais superiores; tampouco podemos estipular com certeza quais serão as consequências de diversas atitudes maternas e interações com o ambiente no futuro desenvolvimento do feto e, posteriormente, da criança.
Já sabemos, por exemplo, que a organização básica do sistema nervoso é estabelecida aos 28 dias após a concepção (quatro semanas), com a formação dos primeiros neurônios no neocórtex que já começam a funcionar na qualidade de rede neuronal na sétima semana.[2]
Em relação à recepção de dor, já se observam receptores – chamados de nociceptores – na região ao redor da boca nas cinco semanas após a concepção. Na nona semana, já há nociceptores em toda a face, na palma da mão e na planta do pé. Antes disso, nas seis semanas, o feto responde ao toque.[3]
Outro detalhe curioso e importante para entendermos como funciona a recepção dolorosa do ser humano é que o recém-nascido prematuro tende a sentir muito mais dor aos estímulos ambientais do que crianças nascidas a termo, pois o desenvolvimento de estruturas responsáveis por reduzir a potência do estímulo ambiental e prevenir reações dolorosas exageradas são desenvolvidas posteriormente, entre 32 e 34 semanas após a concepção. Logo, é mais fácil que se sinta mais dor quanto mais cedo ocorrer o parto.[4]
Um detalhe pragmático que muitos também optam por esquecer é que o feto é considerado um paciente. Se para uns médicos, o feto claramente merece cuidado, incluindo anestesia em procedimentos cirúrgicos de altíssima complexidade dentro do útero materno, como podemos concordar que outros médicos considerem o feto apenas um monte de carne indesejável a ser expelido?
Um dos elementos típicos da vida humana é a capacidade de sentir dor e sofrer. Animais sentem dor, mas é difícil afirmar que sofrem verdadeiramente conforme a concepção humana que temos dessa expressão. E quando falamos dos mais indefesos seres humanos, já se sabe que a dor sofrida poderá gerar consequências emocionais, comportamentais e cognitivas na vida posterior, após o parto. Há inclusive evidências sobre a habilidade de formar, por parte do feto, um tipo de memória sobre a dor sofrida.[5]
Diante da atual insensibilidade aos sofrimentos do feto, diante da atual falta de consideração pelo mais frágil dos seres humanos, não estranhe se cada vez mais nos tornarmos insensíveis aos sofrimentos e dores de crianças e adultos. Se nos tornarmos incapazes de enxergar a humanidade de um feto ou de uma criança, em breve seremos incapazes de enxergar o mesmo em nossos vizinhos e parentes. Nossa sociedade mergulhará num pesadelo desumano e utilitário despersonalizado.
(*)Hélio Angotti Neto - Professor de Medicina e Coordenador do Curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo. Médico formado pela UFES com residência em Oftalmologia e Doutorado em Ciências pela USP. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC, Diretor da Mirabilia Medicinae, revista especializada em Humanidades Médicas e criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina. Presidente da Comissão de Bioética do Hospital Maternidade São José. Presidente do Capítulo de História da Medicina da Sociedade Brasileira de Clínica Médica - Diretoria Triênio 2017-2020.
[1] VANHATALO, S; VAN NIEUWENHUIZEN, O. ‘Fetal Pain?’ Brain & Development, 22, 2000, p. 145-150.
[2] SADLER, Thomas W. Langman’s Medical Embriology, 11th edition. Baltimore: Lippincott Williams and Wilkins, 2009, caps. 5 e 6.
[3] BRUSSEAU, R. ‘Developmental Perspectives: Is the Fetus Conscious?’International Anesthesiology Clinics, 46 (3), 2008, p. 11-23; MYERS, LB; BULICH, LA. ‘Fetal endoscopic surgery: indications and anaesthetic management’. Best Practice & Research Clinical Anaesthesiology, 18(2), 2004, p. 231-258; BLACKBURN. Maternal, Fetal, and Neonatal Physiology.
[4] GRECO, C; KHOJASTEH, S. “Pediatric, Infant and Fetal Pain”. In: Case Studies in Pain Management. KAYE, Alan David; SHAH, Rinoo V. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 379.
[5] Doctors on Fetal Pain. Internet, http://www.doctorsonfetalpain.com/fetal-pain-the-evidence/4-documentation/ ; GRECO, C; KHOJASTEH, S. Op. cit.
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