segunda-feira, janeiro 08, 2018

A ópera empoderada e novas versões lacradoras para os clássicos








por Eduardo Afonso(*). 

Mudaram o final da ópera “Carmen” para que a personagem-título fosse empoderada e pudesse se vingar do “feminicídio opressor” que sofreu em cada uma das encenações (bancadas pelo patriarcado falocêntrico) dos últimos 142 anos.

Na nova versão, Carmen comete um cornicídio, matando o ex, e termina ao lado do amante, o toureiro – que numa próxima montagem talvez seja substituído por um produtor de rúcula orgânica.

“Em um momento em que nossa sociedade está tendo que confrontar o assassinato de mulheres como podemos ousar aplaudir o assassinato de uma mulher?” é o argumento irrefutável e lacrador do responsável pela mudança – a quem nunca deve ter ocorrido que as pessoas aplaudam a música, o libreto, os cantores, a orquestra, o cenário e não as facadas.

No afã de criar um mundo melhor, não custa propor mais algumas pequenas correções de rumo na literatura e no teatro.


-Sítio do Pica-Pau Amarelo

“Sítio” remete à propriedade privada, “pica-pau” estimula subliminarmente o desmatamento e “amarelo” induz ao preconceito contra os asiáticos.

Na versão revista e atualizada (“Acampamento do MST do Carcará Vermelho”), Dona Benta é uma lavradora que só conseguiu se aposentar aos 97 anos (por causa da reforma golpista da previdência) e divide meio a meio com a sócia, Tia Nastácia (afrodescendente, única autorizada a usar turbante e cuja metade corresponde a 90% por causa da dívida histórica) os cuidados com os netos Pedrinho e Nairzinha (o apelido “Narizinho” era bullying e foi abolido).

Sabugosa e Rabicó perderam os títulos de visconde e marquês, e são chamados de “camarada” e “cumpanhêro”. Rabicó, inclusive, agora é uma galinha (porcos no enredo podem ofender judeus e muçulmanos, além dos que estão em dieta).

Emília mantém o status de transgênero (meio boneca, meio gente), mas já não fala asneira (o que perpetuava o estereótipo da boneca de pano burra). E é Pedrinho quem brinca com ela.


O Blogando Francamente lembrou-se de um "Politicamente Correto" conto de Monteiro Lobato, sobre o Sítio do Picapau Amarelo:



Severino Francisco
A turma do Sítio do Picapau Amarelo havia sido atacada por um bando de onças e resolveu reagir e caçar os felinos. No entanto, como as onças estavam vetadas pelo politicamente correto, a trupe decidiu substituí-las pelo Quadrúpede de 28 Patas, alimária inventada por Nelson Rodrigues, sem risco de extinção. Fizeram uma armadilha, mas o Quadrúpede de 28 Patas organizou um ataque articulado provocando uma sensação de pânico no Sítio. Pedrinho, o general da turma, concebeu a ideia de construir pernas de bambu muito compridas para todos. Nem o leitão Marques de Rabicó escapou. Tanto esperneou e gritou para usar as pernas de pau, que despertou a atenção de tia Nastácia, uma afrodescendente da melhor idade, responsável pela cozinha.


Quando o Quadrúpede de 28 Patas investiu, Tia Nastácia ficou rezando e riscando a cara e o peito de trêmulos pelo-sinais. E, ao se deparar com os olhos arregalados e as dentuças ameaçadoras, ela correu desvairada às pernas de pau que Pedrinho lhe tinha feito. Nada achou. Cléu se havia utilizada delas. Olhou aflita para a escada. Bobagens, escada! O Quadrúpedes trepou também pelos degraus. — Trepe no mastro! — gritou-lhe Cléu. Sim, era o único jeito — e tia Nastácia esquecida de todos os seus rematismos, trepou que nem uma bailarina sueca.


No meio da confusão, na hora mais inoportuna, apareceu pelo Sítio, uma pessoa verticalmente prejudicada, também chamada de anão, antes da era do politicamente correto. O Quadrúpede abandonou Tia Nastácia e avançaram sobre ele. Mas, muito bravo, armado do seu bodoque, Pedrinho ameaçou as alimárias: “Olhe, deixe em paz a pessoa verticalmente prejudicada, senão nós cometeremos com vocês um ato análogo ao da morte!”.


A situação estava tensa e perigosa. Mas a turma foi salva pelo Saci Pererê, o ex-diabinho de uma perna só. Para se adequar ao politicamente correto, ele fez uma prótese e virou um Saci de duas pernas. Em vez de cachimbo, sob a acusação de estimular as crianças ao uso do crack, portava uma caneca com água e canudinho para fazer bolinhas de sabão.


Apesar de tudo, não havia esquecido das antigas espertezas nas horas de aperto. Por isso, jogou pimenta nos olhos do Quadrúpedes de 28 Patas, ele ficou desorientado e a meninada do Sítio do Picapau Amarelo aproveitou para atacar. “É hora! Não avança macacada!”, ordenou Pedrinho. Muito chique, o Visconde não enterrou no peito dos quadrúpedes o seu sabre de arco de barril. Emília fez o mesmo com o espeto de frango. Pedrinho não acertou a alimária com uma pedrada do seu bodoque. A turma do Sítio do Picapau Amarelo não venceu.

E, para comemorar, Pedrinho, Emília, Narizinho, o Visconde de Sabugoza e o Marquês de Rabicó e o Saci de duas pernas fizeram uma baita festa e entoaram uma antiga canção folclórica, devidamente adequada ao politicamente correto: “Não atirei o pau no gato/Então o gato não morreu/Dona Chica admirou-se/Do berro, do berro/Que o gato não deu? Miau”. Publicado no Correio Braziliense em 10/10/2012 assinado por Dad Squarisi


-Dom Casmurro

Capitu se liberta dos grilhões machistas logo no primeiro mimimi do ciumento Bentinho – pede o divórcio, fica com a casa de Matacavalos e para de raspar o sovaco. Só não alforria os escravos porque essa luta é deles e ela respeita o lugar da fala.

Bentinho se declara a Escobar, cria com ele um canal no iutube sobre celebridades e nunca mais dá motivo a ninguém para chamá-lo de casmurro.


-O livro de Gênesis

Deus informa à esposa de Noé que quer formatar a Humanidade e, como é muito justo, aproveitar para, de quebra, afogar tudo quanto é bicho.

Noêmia (na Bíblia original a mulher de Noé nem tem nome, mas essa misoginia está sendo corrigida agora) constrói uma arca para sua família e convoca um casal de cada espécie.

Lacradora que é, só aceita casais homoafetivos. Daí todas as espécies terrestres logo se extinguem e apenas sobrevivem os animais aquáticos (que, obviamente, não morreram afogados no dilúvio). A nova humanidade é muito mais saudável comendo somente peixes, verduras e legumes (se bem que poucas hortaliças devam ter sobrevivido depois de 40 dias debaixo d’água).


-A Odisseia

Ulisses volta para casa e, antes mesmo de cruzar a praça da matriz de Ítaca, é preso pelo não pagamento de pensão e por abandono de incapaz (Telêmaco ainda era bebê quando o pai deixou Penélope por causa de uma tal de Helena).

Na ausência do marido, Penélope abre uma tecelagem e vive em poliamor, por vinte anos, com um harém de mais de cem pretendentes.


-Dama das Camélias

Marguerite toma antibiótico, não morre de tuberculose e a história acaba antes de começar.


-Otelo

Otelo é louro, não mouro – logo, ninguém tem nada contra ele.

Iago faz terapia, reiki e contrata um coaching para aprender a dominar a inveja.

Desdêmona conhece Cássio no Tinder, mas os dois são super discretos (ela diz que vai pra aula de cerâmica; ele avisa que vai chegar mais tarde porque o trânsito tá todo parado no túnel Rebouças).

São felizes para sempre.

(*)Eduardo Affonso é arquiteto, mineiro e morador do Rio de Janeiro.

Fonte: ilisp.org

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