sábado, novembro 04, 2017

A iguaria portuguesa que salvou a vida de judeus durante a Inquisição



por Theodora Sutcliffe.

BBC Travel



A Manteigaria Silva é uma das mais antigas delicatéssen de Lisboa, e que pouco mudou desde 1928. Há presuntos dependurados por todo o teto, enquanto garrafas de vinho do Porto e Madeira disputam espaço nas prateleiras. Queijos dourados esperam a faca. E, ali ao lado, há uma salsicha que, por força de uma enquete nacional realizada em 2011, foi declarada uma das "Sete Maravilhas da Gastronomia Portuguesa": a alheira.

Em países consumidores de embutidos, comensais não veem com bons olhos se uma salsicha tem uma proporção muito grande de seu recheio que não seja carne. Mas a alheira é justamente isso: carne de aves ou coelho, pão, azeite, banha e colorau - além, claro, de MUITO alho. Só que o apreço por ela é também uma questão histórica: essa salsicha pode ter ajudado a salvar milhares de vidas na Idade Média.

A cozinha portuguesa é repleta de narrativas que refletem um passado de invasões e colonizações que forma uma tapeçaria misturando continentes e religiões. "Muitos pratos em Portugal datam do período da Invasão Moura, que também ficou conhecida como uma era dourada para os judeus na Europa Ocidental", explica Paulo Scheffer, um especialista na história judaica de Lisboa.

Endereço: Rua Dom Antão De Almada 1, Lisboa, 1100, Portugal


A partir do século 8, muçulmanos do Norte da África deram as cartas em grande parte da Península Ibérica, incluindo uma cidade cheia de colinas chamada Al-Ushbuna. Uma comunidade judaica ali existia havia muito tempo, mas conviveu com harmonia com os invasores.

Do marzipan e confeitos com água de rosa a sopas, cozidos e salsichas, as duas culturas deixaram suas marcas gastronômicas no que se tornaria Lisboa.

"Temos salsicha moura, pratos mouros com peixes e até caldos mouros, como um prato de frutos do mar chamado cataplana", observa Scheffer.

"Mas esses pratos obedeciam às leis religiosas islâmica e judaica, sem ingredientes hoje usados, como crustáceos e porco."

No século 12, quando os cruzados cristãos passaram pela primeira vez por Lisboa, assassinando e violentando muçulmanos, judeus e mesmo irmãos de fé, a cidade já tinha sua cultura culinária: elementos cristãos, como a carne de porco, misturaram-se à palheta de sabores.
Judiaria ou bairro judeu era a parte de uma cidade em que eram obrigados, por lei, a residir os judeus. Por extensão, o termo aplica-se a qualquer parte de um aglomerado populacional habitado maioritária ou exclusivamente por pessoas de cultura judaica.


Mais tarde, com as navegações, ingredientes como tomates e pimentas deixariam sua marca. Historiadores com Scheffer dizem que é difícil separar o que hoje é identificado como comida portuguesa de suas raízes árabes e judaicas.

Mesmo depois da expulsão dos mouros pelas Cruzadas, Portugal seguiu como um lugar relativamente tolerante. Mas depois que os reis Ferdinando de Aragão e Isabel de Castilha - sim, o mesmo casal real que financiou a expedição de Cristóvão Colombo - expulsaram os árabes de seu último emirado na península, Granada, mudou tudo.

Memorial no Largo de São Domingos, em Lisboa. Crédito: Shutterstock



Católicos devotos e amigos do Vaticano, Ferdinando e Isabel acreditavam que judeus praticantes poderiam encorajar convertidos ao cristianismo a voltar a adotar a religião original. E criaram uma legião de interrogadores que saiu em perseguição dos judeus no que ficou conhecido como a Inquisição Espanhola.

Como resultado, dezenas de milhares de judeus foram expulsos ou fugiram do que hoje é a Espanha, tomando o rumo de Portugal, em especial Lisboa. Mas a cidade não ficou segura por muito tempo: depois de a superpopulação causar um surto de praga, cristãos portugueses forçaram os judeus a viver do lado de fora das muralhas.

Museu Judaico em Belmonte

E, em 1496, Portugal aderiu às conversões forçadas de judeus para o cristianismo. Dez anos mais tarde, o Massacre da Páscoa resultou na perseguição, tortura e morte de centenas de pessoas "acusadas" de serem judias durante apenas três dias. Iria piorar: em 1536, a Inquisição chegou de vez a Portugal e não demorou muito para que judeus fossem torturados e queimados na fogueira com a chancela oficial.


Muitos deles optaram por converter-se ao Cristianismo, mas por vezes como "disfarce". Para esconder a fé de verdade, usavam expedientes como escrever preces hebraicas em livros de oração cristãos ou combinar palavras judaicas a rituais católicos - uma comunidade em Belmonte, por exemplo, conseguiu esconder sua fé por mais de 400 anos.

E foi nas montanhas de Trás-os-Montes que uma comunidade escondida criou a melhor alheira de Portugal: a alheira de Mirandela.

Era costume em Trás-os-Montes que moradores conservassem salsichas de porco para consumir nos meses de inverno, penduradas em vários pontos da casa. Mas não na casa de judeus, que não comem carne suína.

"Mas em Mirandela foi desenvolvida uma salsicha de pão que poderia enganar informantes e 'dedos-duros' dispostos a denunciar judeus buscando refúgio da Inquisição", diz Scheffer.

Para judeus asquenazes, segundo Scheffer, a alheira de Mirandela parece muito a kishke, uma salsicha kosher recheada com gordura, farinha de trigo, cebola e temperos, geralmente servida com o tcholent, cozido de feijão servido no shabat (aos sábado).

Os judeus de Trás-os-Montes tradicionalmente faziam sua alheira com pão e frango. Hoje em dia, a iguaria deixou as montanhas e pode até incluir carne de porco. É encontrada em cafés e supermercados, apesar de ser esnobada por estabelecimentos gourmet. Em locais de orientação culinária mais popular, é consumida com ovos fritos, batatas fritas e arroz.

Portugal também redescobriu sua história judaica. Embora os judeus só tenham começado a retornar ao país no século 19 e não houvesse mais do que mil judeus em Lisboa durante os anos em que Hitler esteve no poder na Alemanha, a cidade - o país era neutro - foi refúgio para quem fugiu da perseguição do nazismo.

Desafiando o ditador António Salazar, o diplomata Aristide de Sousa Mendes, por exemplo, deu documentos de viagem para que milhares de judeus cruzarem o Atlântico e escapassem dos horrores do Holocausto.

Mas a alheira hoje deixou de ser um símbolo de sobrevivência para se tornar elemento comum na culinária portuguesa. Só que, ao mesmo tempo em que a palavra "sábado" vem do shabat judeu (o dia de cessação do trabalho), a salsicha é uma pista de um passado cosmopolita. E complexo.


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