sexta-feira, novembro 10, 2017

A destruição em nome da emancipação:Simone de Beauvoir e Judith Butler



por Ricardo Gustavo Garcia de Mello.




A destruição da ordem natural binária do sexo, homem e mulher é, em grande parte, produto de manifestações mórbidas na psique ou alma que são provocadas por ideias. E o estudo destas ideias-força, a ideogênese, é importante para compreender o impacto ou as consequências de certas ideias no pensamento e ação humana. Simone de Beauvoir (1908-1986) e Judith Butler (1956) são as genitoras notáveis das ideias que subverteram o nexo natural entre o gênero – homem e mulher o corpo – sexo masculino e feminino e o desejo sexual – ter atração por homem ou mulher.



Para Beauvoir e Butler, é um erro e engodo buscar a igualdade jurídico-política entre homens, mulheres e homossexuais, ou o reconhecimento da pessoa humana em todos os indivíduos, independendo do seu sexo ou cor. É este compromisso humanista que aliena as mulheres e homossexuais, os impedindo de buscar o poder. A luta pela igualdade jurídico-política ou humanista, serve para aliviar a tensão e conciliar as diferenças de modo pacífico, alienando a mulher e o homossexual na humanidade ou essência humana que foi criada pelo homem branco, machista e ocidentalista que conseguiu expandir o seu império através da alienação dos indivíduos de diversas culturas e territórios, em torno do ideal de humanidade ou natureza, uma das ideologias imperialistas. 


Beauvoir e Judith Butler, não desconstroem apenas os aspectos socioculturais de gênero, a masculinidade e a feminilidade. Elas também destroem a própria ordem natural binária do ser humano, homem e mulher, alegando defender as mulheres e os oprimidos.


O raciocínio de Beauvoir e Butler leva à extremidade lógica o próprio relativismo. No “relativismo moderado” existe uma simetria entre todas as culturas, mas continua a existir a mesma natureza humana por debaixo das diferentes roupagens culturais. Já as ideias de Beauvoir e Butler radicalizam o próprio relativismo, não existe uma mesma natureza humana por debaixo das diferentes roupagens sociais e culturais - a própria natureza humana, é uma roupagem sociocultural.


A concepção de uma ordem natural binária e complementar, homem e mulher, é tomado pelos destrutivistas ou relativistas radicais. Como uma forma de naturalizar as desigualdades socioculturalmente construídas. E só a negação de toda concepção de ordem natural e verdade, pode trazer uma liberdade radical para os indivíduos. Eu considero que a negação da ordem natural ou da verdade, não liberta os indivíduos, mas antes os torna vulneráveis às arbitrariedades. 
As categorias, homem e mulher, existem apenas para reprimir certos indivíduos, e “empoderar” outros. 


Simone de Beauvoir (1908-1986), pensadora existencialista francesa que influenciou e foi influenciada por Jean-Paul Sartre. É em termos teóricos, a inauguradora da tradição existencialista feminista. A obra Segunda Sexo (1949) com cerca de mil página, em dois volumes – fatos e mitos (v.1) e a experiência vivida (v.2). Afirma que não existe natureza feminina, esta é a existência numa dada sociedade e cultura que confere à existência daqueles indivíduos o sentido de serem de um sexo inferior, o segundo sexo – a mulher-fêmea, que está abaixo do sexo superior, o primeiro sexo – o homem-macho.

"Sem dúvida, a teoria do eterno feminino ainda tem adeptos [...] Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade. [...] No tempo de Sto. Tomás, ela se apresentava como uma essência tão precisamente definida quanto a virtude dormitiva da papoula. Mas o conceitualismo perdeu terreno: as ciências biológicas e sociais não acreditam mais na existência de entidades imutavelmente fixadas...”[BEAUVOIR, 1970, v.1, p.7-8]


O existencialismo feminista de Beauvoir, já afirmava aquilo que Judith Butler irá trabalhar em suas obras - que não existe a mulher como uma entidade imutavelmente fixada pela sociedade ou pela biologia, ou seja, não existe natureza feminina. 


“Quando emprego as palavras "mulher" ou "feminino" não me refiro evidentemente a nenhum arquétipo, a nenhuma essência imutável [...]” [BEAUVOIR, 1967, v.2, p.7]


Para Beauvoir, não existe uma essência particular da mulher ou natureza feminina. Não existe essência, tudo é mutável e relativo de acordo com a circunstância tempo-espaço, e situação social.


“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferençada.” [BEAVOUIR, 1967, v.2, p.8]


Se ninguém nasce mulher, mas se torna mulher. O gênero, o desejo sexual e até o corpo da mulher são constructos socioculturais, que foram internalizados subconscientemente pelos indivíduos como um dado natural. 
“[...] é preciso sublinhar mais uma vez que as mulheres nunca constituíram uma sociedade autônoma e fechada estão integradas na coletividade governada pelos homens e na qual ocupam um lugar de subordinadas ...” [BEAUVOIR, 1967, vol.2, p.363]


É necessário que as mulheres não aceitem a relação homem e mulher como uma relação de complementariedade necessária ou alma gêmea. As mulheres devem realizar uma ruptura radical com a relação homem-mulher, e estruturar relações entre mulheres, no amplo sentido do termo.


“A própria mulher reconhece que o universo em seu conjunto é masculino os homens modelaram-no, dirigiram-no e ainda hoje o dominam ela não se considera responsável está entendido que é inferior, dependente não aprendeu as lições da violência, nunca emergiu, como um sujeito, em face dos outros membros da coletividade fechada em sua carne, em sua casa, apreende-se como passiva em face desses deuses de figura humana que definem fins e valores. [BEAUVOIR, 1967, vol.2, p.364]


A própria ordem natural binária, homem e mulher, é uma construção ideológica que naturaliza relações desiguais de poder – a mulher é uma construção ideológica do patriarcado. 


“O quinhão da mulher é a obediência e o respeito. Ela não tem domínio, nem sequer em pensamento, sobre essa realidade que a cerca.” [BEAUVOIR, 1967, vol.2.p.364]


Para Beauvoir, a mulher só vai se emancipar no momento que romper os seus vínculos materiais e psicológicos com a figura do homem. E fazer da ingratidão e do desprezo, uma forma de luta contra a cordialidade feminina criada pelo patriarcado, com o objetivo de tornar as mulheres servis e dóceis. 


“[...] ensinaram-lhe a aceitar a autoridade masculina renuncia pois a criticar, a examinar, a julgar por sua conta. Confia na casta superior. Eis por que o mundo masculino se apresenta a ela como uma realidade transcendente, um absoluto. “Os homens fazem os deuses, diz Frazer, as mulheres adoram-nos”.[BEAUVOIR, 1967, v.2, p.366]


O homem-macho é o criador do universo, tudo que existe foi inventado por homens, o universo será sempre masculino. Por isto, é necessária uma revolução radical em todas dimensões da vida econômica, política, intelectual e sexual. 
Judith Butler (1956), em sua obra Problema de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). Explicita e reforça a necessidade de destruir o nexo natural entre corpo, gênero e desejo sexual, para afirmar que o gênero, o desejo sexual, e até o corpo são constructos socioculturais, que foram internalizados subconscientemente pelos indivíduos como um dado natural.


“Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo“, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura.” [BUTLER, 2003, p.25]


A própria Butler reconhece que Simone de Beauvoir é a sua fonte, por considerar não só o gênero e o desejo sexual, mas o corpo masculino e feminino como uma construção sociocultural.


“Beauvoir diz claramente que a gente “se torna” mulher, mas sempre sob uma compulsão cultural a fazê-lo. E tal compulsão claramente não vem do “sexo” Não há nada em sua explicação que garante que o “ser” que se torna mulher seja necessariamente fêmea. Se, como afirma ela, “o corpo é uma situação”, não há como recorrer a um corpo que já não tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais...” [BUTLER, 2003, p.27]


Judith Butler, em seu artigo, Corpos que pensam: sobre os limites discursivos do “sexo”, ela explica que o “sexo” como algo natural, sexualidade masculina e feminina, não existe, é pura construção. 


“A categoria do “sexo” é, desde o início normativa: ela é aquilo que Foucault chamou de “ideal regulatório”. Nesse sentido, pois, o “sexo” não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir – demarcar, fazer, circular, diferenciar – o corpos que ela controla.” [BUTLER, 1999, p.153-4]


O “sexo” em Butler é uma forma de exercício de poder – o governo dos corpos e sua demarcação.


“Assim, o “sexo” é um ideal regulatório cuja materialização é imposta: esta materialização ocorre ( ou deixa de ocorrer) através de certas práticas altamente reguladas. Em outras palavras, o “sexo” é um construto ideal que é forçosamente materializado através do tempo.” [BUTLER, 1999, p.154]


O sexo não é um dado da dualidade da natureza humana, mas um constructo, ou seja, uma construção ideal que é autoritariamente internalizado pelos indivíduos como algo natural. 
Butler, no seu artigo desdiagnosticando gênero (2004) “O sexo se torna compreensível por meio dos signos que indicam como ele deveria ser lido e compreendido. Esses indicadores corporais são os meios culturais através dos quais o corpo sexuado é lido. Eles próprios são corporais e funcionam como signos assim, não há nenhum caminho fácil para distinguir entre o que é “materialmente” verdadeiro e o que é “culturalmente” verdadeiro a respeito de um corpo sexuado.” [BUTLER, 2009, p.108] 


O Sexo masculino e feminino são formas pelas quais as relações sociais, numa determinada cultura codificam os corpos dos indivíduos através de práticas, e discursos. 


E, além disto Butler crítica a concepção de natureza humana ou humanismo. A concepção de humanidade universal que contempla todas as pessoas, é um engodo ideológico concebido pelo homem branco, sexista, burguês, racista e imperialista. Para amortecer os conflitos, e alienar os diferentes em torna de uma luta pelo reconhecimento da humanidade, que só reforça o poder branco, macho, burguês e eurocêntrico. O pensamento de Butler tem por base exacerbar as diferenças e contradições, até se tornarem inconciliáveis e antagônicas. O homem universal, o indivíduo livre, o cidadão nacional, etc., são produções políticas de certas ideologias que excluem a diversidade, e ocultam os conflitos. O humanismo significa a alienação das diferenças pelos Universais. Não existe natureza humana, que transcende as diferentes circunstâncias tempo-espaço, e diferenças socioculturais. 


A Natureza humana, e a sua divisão natural binária ou a heteronormatividade. São construções ideológicas dos poderosos. Que só podem ser subvertidas por elementos que superem o próprio binarismo, homem e mulher, uma etapa superior do feminismo, ou seja, a politização do transgênero como agente da subversão. A subversão radical da ordem, a verdadeira revolução, depende da desnaturalização da dualidade sexual humana, homem e mulher. 


Os indivíduos só serão livres, segundo Beauvoir e Butler, quando os seus corpos poderem adquirir configurações autônomas, e para tal é necessário destruir as relações sociais e discursos que preservam a ordem natural binária, homem e mulher.

Fonte: HeitordePaola.com

Fontes bibliográficas 
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos.v.1, São Paulo: Difusão Européia do Livro (DIFEL) ,1970
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida.v.2, São Paulo: Difusão Européia do Livro (DIFEL), 1967.
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,1999. p. 151-172.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
BUTLER, Judith. Desdiagnosticando o gênero. Physis, Rio de Janeiro , v. 19, n. 1, p. 95-126, 2009.

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