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terça-feira, janeiro 23, 2018

Punitivismo, impunidade e impostura







por Leonardo Giardin de Souza(*)


O grande Percival Puggina, em recente publicação (1), trouxe à colação alguns excertos ilustrativos do pensamento da corrente ideológica hegemônica no Brasil em matéria de criminologia, direito penal e segurança pública. Alguns dos soi disant arautos da “tolerância”, da “democracia” e da “liberdade” foram acolherados em um único artigo, com o perceptível objetivo de que seu discurso de proveta, uniformizado e reproduzido em intermináveis operações de clonagem, adquirisse a aparência externa de um consenso dogmático revestido da mais absoluta cientificidade, fruto de sincera busca dialética da verdade, liberto de quaisquer ranços ideológicos. Malgrado, no entanto, esse verniz “científico”, a “disposição” para o debate desses “tolerantes” denuncia-se no título autoexplicativo do artigo: “A sanha punitivista e/ou a boçalidade do discurso da impunidade”

Quem quer que leia o texto, assinado por Leonardo Yarochewsky, será imediatamente tomado pela sensação de que alguém está substituindo realidade por discurso: ou há uma “sanha punitivista” irracional e despropositada, movida por um mórbido e um tanto sádico “desejo” de jogar pobres e desvalidos em calabouços, ou tenta-se soterrar a realidade sob um sem-número de palavras-gatilho, clichês e chavões, a fim de gerar uma confusão dos demônios, desqualificar os pensadores antagonistas e desviar o foco do coitado do assunto.

Com acuidade e finíssima ironia, o professor Puggina limitou-se a transcrever, para nosso “deleite”, alguns cacos desse latão pseudocientífico banhado no ouro de tolo de títulos acadêmicos. Permite, assim, que o leitor julgue por si o conteúdo. Entretanto, permito-me tecer algumas considerações sobre o material generosamente trazido pelo brilhante escritor gaúcho ao conhecimento do público em geral. Evito, desse modo, ser confundido com os que, olimpicamente, passam ao largo do pensamento alheio, substituindo-o convenientemente por rótulos e etiquetas, calculados para inibir o incauto leitor de travar qualquer tipo de contato substancial com o que querem proibir.

Em sua compilação, Yarochewsky, advogado criminalista e doutor em Ciências Penais, “denuncia” algo que nomeia “criminologia midiática”. Para ele, o “discurso” da impunidade contribui “para o avanço do Estado autoritário e para a cólera do punitivismo”, o que geraria uma “tendência” à proposição de leis “com viés autoritário, conservador e reacionário.” Yarochewski, confiante no impacto a ser causado por conta do costume arraigado no nosso mainstream de torcer o nariz para o termo “conservador”, coloca o maltratado epíteto convenientemente ao lado de termos aterrorizantes como “reacionário” e “autoritário”.

Na monumental obra “A Corrupção da Inteligência”, Flávio Gordon explica – por meio de uma analogia com o conceito de “marcação” da linguística estrutural – como a classe falante brasileira “normaliza” sua própria visão sobre determinados assuntos, dando ares de logos dogmático a perspectivas francamente minoritárias em comparação com o que pensa o cidadão comum. Este, sem meios de expressar coletivamente seu pensamento, acaba por sentir-se um fragmento “anormal” que boia caoticamente em um oceano de unanimidade. Os pontos de vista “não marcados” são o “padrão”, referenciados de forma neutra, e os pontos de vista “marcados” passam por específicos e parciais. Eis o estratagema utilizado por Yarochewsky: “marcar” quem não comunga de seu ideário como “conservador”, “autoritário”, “reacionário”, “punitivista” e “colérico” para, em seguida, valer-se de um velho e surrado clichê, dado como pressuposto científico indiscutível: a prisão se destina aos “criminalizados” por um “processo de estigmatização, segundo a ideologia e o sistema dominante”. Reverbera o discurso pueril da criminologia crítica marxista – todo ele baseado em inversão de causa e efeito e sua confusão com condições e influências.

Nota do Blogando Francamente: Leonardo Yarochewsky é um dos grandes defensores de Lula, deixa isso bem claro nos artigos Não há porque questionar a nomeação de Lula como ministroou ainda nesse: É certo que o Triplex jamais pertenceu a Lula


Yarochewski cita Ricardo Genelhú, que, brandindo o título de pós-doutor em Criminologia, afirma que “o discurso contra a impunidade tem servido de motivo para uma suposta restauração da ‘segurança social’”, mas não passa de “desculpa para a perseguição ao 'outro' (…) com seu ensaio neurótico promovido por pessoas com onipotência de pensamento”, servindo mais “para ‘justificar’, ‘ratificar’ ou ‘manter’ a exclusão dos ‘invisíveis sociais’, tragicamente culpados e, por isso, incluídos por aproximação com os ‘inimigos’ (parecença), do que para demonstrar a falibilidade seletiva e estrutural do sistema penal antes e depois que um ‘crime’ é praticado, ou enquanto se mantiver uma reserva delacional publicizante, seja porque inafetadora do cotidiano privado, seja porque indespertadora da cobiça midiática.” A primeira ideia que me veio à mente ao travar contato com esse estilo intragável, pedante e de pouca inteligibilidade ao vulgo, foi o indefectível diagnóstico de Roger Scruton, para quem “o jargão afetado e sem sentido é muito mais eficaz na propagação das opiniões de esquerda e progressistas do que os argumentos bem fundamentados”, em razão de que “quando afirmadas explicitamente, expõem-se à ameaça de refutação, algo a que elas nem sempre sobrevivem”(3) . Quando ao jargão afetado une-se o manjadíssimo truque “xingue-o do que você é, acuse-o do que você faz”, a coisa assume ares de escandaloso golpe contra o debate racional. É até ofensiva a desfaçatez de alguém que, arrogando-se a condição de dono da verdade e demonstrando verdadeiro horror à divergência, aponte no outro, e não em si, “neurose” e “onipotência de pensamento”. Acresce-se a isso a audácia de falar em “perseguição ao outro”, embutida em um sujeito que demite o delinquente de sua própria condição humana, ao negar-lhe capacidade decisória fundada na autoconsciência e na liberdade individual. Ao mesmo tempo, objetifica a vítima como instrumento de busca de bens materiais pelo “excluído social” que ele mesmo, ao fingir defender, despersonaliza e equipara a um animal que age movido apenas por instintos e reflexos condicionados. Dividir o mundo entre “nós” e “eles”, prática indissociável dos intelectuais marxistas, implica assumir a visão de um mundo de objetos, sem sujeitos, cuja consequência necessária é falta generalizada de empatia com o próximo. Eis o perfil real de certos intelectuais que denunciam atentados à “outridade”, e que, quando convém, utilizam a palavra crime entre aspas.

Yarochewski prossegue invocando Salo de Carvalho, advogado e professor, que diz haver um “sintoma contemporâneo” que denomina “vontade de punir”. Nada pode ser mais projetivo: ao medir o outro com sua própria régua, o citado jurista não faz nada além de criar um espantalho com quem brigar, de pronto decalcando-lhe na testa o oposto de seu ideário laxista (a vontade férrea de não punir bandidos que não respeitam nenhuma “outridade”). Por meio dessa variante da cosmovisão “nós x eles”, retira providencialmente o debate do campo da discussão sobre a necessidade de punição para a seara da voluntariedade. Note-se que é exatamente essa a condição mental na qual surge a decisão de cometer um crime. Carvalho parece identificar-se com esse voluntarismo, para o qual quer atrair, na base de um tu quoque invertido, os que defendem resposta adequada e proporcional à conduta de um malfeitor. Essa postura intelectual abre campo a uma discussão que resultará inexoravelmente na escolha do tipo de arbítrio que deve prevalecer. Daí porque o próprio Salo nos impõe um dilema, sem notá-lo, entre dois tipos de arbítrio: o da “democracia substancial” (marcação “neutra” ou com aparência científica), que blinda a decisão de delinquir sob uma carapaça causal-determinista, ou o “das macropolíticas punitivistas (populismo punitivo), dos movimentos políticos-criminais encarceradores (lei e ordem e tolerância zero) e das teorias criminológicas neoconservadoras”, marcados com rótulos de intenção de significado infamante, que nem de longe refletem o apelo à justa retribuição que embasa o pensamento “analisado”.

Por fim, Marildo Menegat, pós-doutor em Filosofia, sob aplausos efusivos de Gramsci e Alinsky desde algum círculo profundo do inferno, clama pela “politização” do debate, “o único caminho para pôr termo, quem sabe aos martírios e sacrifícios desde sempre praticados” pela “espécie” humana. Não se sabe em que sentido a politização da potência de fazer o mal poderia servir para corrigir essa tara inata dos indivíduos humanos, que se atualiza pari passu com seu tratamento “politizado”. Mas por que não buscar reduzir os “martírios e sacrifícios” provocados por tantos criminosos “empoderados” pelo discurso justificador e pela cultura da bandidolatria, de cuja conduta resulta o sacrifício de 60.000 brasileiros por ano? Pois, alheio a isso, Menegat propõe que “é hora de nos entregarmos à realização da liberdade e, para isso, o fim das prisões torna-se imperativo”, sem esclarecer a liberdade de quem seria “realizada” com o fim das prisões e a consequente libertação de toda sorte de assassinos, assaltantes, traficantes e estupradores. No entanto, há algo a comemorar no discurso, que encerra, com chave de ouro, o trailer do inferno coletado com luvas de laboratorista pelo mestre Puggina: a confissão espontânea, compartilhada pelos desencarceramentistas, da mais descarada apologia do abolicionismo penal. É evidente que convém a esse grupo ideológico travestido de científico, em sua “sanha” laxista e seu abolicionismo “colérico”, que as prisões sejam lugares cada vez mais inabitáveis, para que possam berrar neuroticamente, aos quatro ventos, a “falência” do sistema e exigir de modo autoritário sua extinção. Quando um porta-voz dessa ideologia afirma que o sistema carcerário “faliu”, é algo como Caim avisar candidamente que Abel “morreu”.

Para esses intelectuais orgânicos, apontar racionalmente a necessidade de uma punição adequada aos crimes cometidos voluntariamente por agentes individuais – abordando do ponto de vista empírico a chaga da impunidade – torna-se, num grotesco truque de mágica, “desejo” de punição, “cólera” e “sanha” persecutórias, “neurose” e delírio de onipotência. Exclui-se da esfera do pensamento racional a argumentação do oponente de ideias para jogá-la indevidamente na seara da psicopatologia. Sobre isso, diria Pirandello: ma non è uma cosa seria! Nesse campo, quanto mais a vítima da artimanha maliciosa se defende, mais louca parece aos desavisados. Ante tamanho grau de impostura com verniz de pseudociência, só resta render-me à “metodologia” desses doutos ilusionistas e desmascará-los: “é golpe!”.

Sempre desconfiei que esses senhores julgassem idiotas todos os demais membros da humanidade, à exceção dos iniciados nos ritos de sua igrejinha acadêmica. Mas não imaginava que fizessem tão pouco da inteligência alheia, ignorando ao mesmo tempo a catastrófica situação de sua própria. Esse paradoxo é muito bem observado e descrito por Flávio Gordon, para quem esses intelectuais são as primeiras vítimas do fenômeno que ele denomina, em seu extraordinário livro homônimo, “a corrupção da inteligência”, espécie de corrupção não criminalizável porque não se refere a um fenômeno causal, mas é fruto de uma alteração substancial do ser que afeta de forma trágica o intelecto e a personalidade do agente-vítima. Quem quer que pretenda nunca mais entender coisa alguma, que ingresse resoluto nessa prisão mental e jogue a chave fora, como fazem esses homens. Sendo essa uma decisão livre, de nada adianta buscar culpados que não sejam as próprias vítimas desse longo e doloroso processo de suicídio intelectual.

Essas observações aparentemente irreverentes não constituem de maneira alguma insultos ou adjetivações gratuitas. Busca-se uma descrição que só adquire contornos ácidos justamente por respeitar o objeto, descrevendo-o com fidelidade. Vimos que esses intelectuais ousam sugerir, senão afirmar, que impunidade não existe neste paraíso perdido. Não passaria de um “discurso midiático” forjado para gerar “autoritarismo” e “criminalizar” os “excluídos”. É perceptível que, não dispondo de meios racionais para refutar uma realidade indesmentível e brigar com os fatos (4), somente resta-lhes um apelo emotivo: imputar intenções malignas e soturnas, temperadas de estupidez e ignorância, àqueles que ousam descrever o que qualquer um vê com os olhos da cara. Arrogam-se a condição de defensores de uma humanidade que só amam em abstrato. A impunidade real cuja ostensividade e feiúra estampada em seus frutos cotidianos é insuportável à visão daqueles que se comportam ao modo avestruz, deve ser, juntamente com a humanidade de carne e osso que sofre com a criminalidade, convenientemente posta de lado e excluída do debate. Em seu lugar, entra em cena uma “impunidade” prêt-a-porter, mistificada, retórica e evanescente, moldada como espantalho para uso dos “defensores” de um humanismo sem humanidade, abstrato, insípido, inodoro, incolor e sem sangue. Assim, esperam tornar politicamente incorreto o uso da própria palavra “impunidade” e estigmatizar quem dela se vale como instrumento de descrição dos fatos.

É preciso estar demasiado fora da realidade para crer haver “punitivistas encolerizados” à mancheia, como lobos perseguidores, prontos a devorar pobres cordeirinhos marginalizados (5) pela sociedade e empurrados inexoravelmente para a criminalidade por culpa de entidades etéreas como “capitalismo tardio” e “sistema burguês”. De fato, parafraseando o professor Percival Puggina, a imagem do restante da biblioteca deve ser imprópria para menores, e aqueles que sustentam nossas universidades com o suor do próprio rosto, na vã ilusão de estar investindo em conhecimento e ensino “superior”, devem atentar para esse tipo de conteúdo nefasto e imbecilizante, a ser neutralizado não mediante censura, mas pela persistente exposição dessas ideias, por si aptas a causar repulsa, e pela contínua análise crítica desse pensamento destrutivo. Somente assim serão criados anticorpos intelectuais para defesa de mentes incautas, expostas ao fluxo torrencial desse ideário maligno nas artes, nos meios de comunicação e nos ambientes acadêmicos.

Referências:

(1) http://www.puggina.org/artigo/puggina/conheca-o-pensamento-dos-defensores-da-impuni/10951

(2) ROGER SCRUTON, “Uma Filosofia Política: Argumentos para o Conservadorismo”. É Realizações, p. 137.

(3) Vivemos em um país cujos níveis de elucidação de homicídios atinge até 8% (ainda assim superior à taxa de esclarecimento dos crimes em geral), que registra mais de 1.700.000 roubos por ano (dos quais um Estado como o Rio de Janeiro consegue apurar menos de dois por cento dos autores), em que há cerca de 700.000 mandados de prisão em aberto (o número de foragidos supera o de encarcerados em nosso país “autoritário”), e onde a punição efetivamente aplicada dilui-se em progressões de regime carcerário cuja velocidade é turbinada com remições, “prisões” domiciliares, monitoramento eletrônico, fugas etc.

(4) Uma dessas “vítimas do sistema” é o hoje “jurista” Marcinho VP, líder da facção criminosa Comando Vermelho. Recentemente, VP anunciou que irá lançar um livro sobre o que entende por “direito penal do inimigo”, que muito bem poderia ser prefaciado por qualquer um dos doutos aqui citados: as ideias defendidas pelo novel “doutrinador”, atualmente hóspede da Penitenciária Federal de Mossoró, RN, muito se assemelham aos excertos analisados no presente texto.

Fonte: midiasemmascara.org

(*)Leonardo Giardin de Souza, promotor de justiça, é, juntamente com Diego Pessi, autor do livro ‘Bandidolatria e Democídio‘.

Publicado no site de Percival Puggina, escritor e colunista do Mídia Sem Máscara.

quarta-feira, setembro 06, 2017

O mito do encarceramento em massa




por Bruno Amorim Carpes(*).







“Números redondos são sempre falsos”, alertava o escritor inglês Samuel Johnson. Nos últimos anos, mídia engajada, ativistas e setores da academia jurídica têm repetido à exaustão que o Brasil possui um “sistema punitivista e encarcerador em massa”. De forma a referendar suas convicções, citam os números do relatório Infopen, divulgado pelo Ministério da Justiça em dezembro de 2014, que revela a existência de aproximadamente 622.000 presos nas cadeias brasileiras. Esta estatística alavanca o país, segundo o próprio relatório, ao 4º lugar mundial em população carcerária em números absolutos,não obstante a posição brasileira de 5ª maior população mundial, suspeitosamente omitida.

Em estudo conjunto com Promotores de Justiça de Minas Gerais, dentre eles Renato Teixeira Rezende, apresentado no I Congresso Brasileiro da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais, realizou-se análise comparativa detalhada entre os números divulgados em 2014 pelo relatório Infopen e as estatísticas divulgadas pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em 2016, em seu Relatório do Sistema Prisional Brasileiro.
Já em um primeiro passar de olhos, surpreendi-me com a gritante incongruência dos números prisionais.

Inicialmente, em relação à própria população carcerária: enquanto o órgão federal informa 622.202 presos, o CNMP, no ano seguinte, informa 557.310 presos. A explicação quanto à grande diferença, em parte atenuada pelo número de presos em delegacia não contabilizados pelo CNMP (37.444), pode estar no interesse dos estados brasileiros em inflacionar sua população carcerária, a fim de possibilitar maiores repasses do FUNPEN (Fundo Penitenciário Nacional), uma vez que são os entes federados que informam os dados. Enquanto isso, os números do CNMP são recolhidos pelos membros do Ministério Público encarregados pela fiscalização mensal dos estabelecimentos prisionais.

A seguir, a fim de cotejar os índices de presos com os demais países, em consulta ao sítio eletrônico que busca realizar comparativo global prisional (prisonstudies.org), foi possível constatar que o Ministério da Justiça buscou alavancar a posição brasileira no comparativo, tendo desrespeitado os critérios adotados pelo instituto internacional. Isto é, não observou que o estudo global corretamente considera como preso somente aquele que se encontra em regime integralmente fechado; e como preso provisório somente aquele que se encontra aguardando julgamento.

Por conseguinte, conforme o relatório do CNMP (o último relatório do órgão executivo federal não informa o número de presos por regime), o Brasil possui 456.108 presos – dentre provisórios e no regime fechado, e não 622.202. Essa brutal diferença influencia diretamente na taxa de encarceramento brasileiro (número de presos a cada cem mil habitantes). Assim, adotando-se o justo critério considerado pelos demais países, o Brasil passa a configurar na 60ª posição mundial e na 8ª posição da América do Sul (13 países), com 224 presos a cada 100.000 habitantes. Dessa forma, o país com maior número de homicídios no mundo e que alcançou a marca de aproximadamente um milhão de roubos, conforme levantamento realizado em 2011 (parou-se inexplicavelmente a contagem), encontra-se próximo da taxa europeia, de 192 presos para cada 100.000 habitantes.

Ainda, ambos os relatórios consideram presos provisórios todos aqueles sem julgamento transitado em julgado, apresentando percentuais que oscilam entre 35% e 36%, taxas menores que as de Suíça e dos Países Baixos, e em paridade com a Itália, todos países que não utilizam o nosso critério alargado. Não obstante a falta de critério equânime adotado pelos órgãos oficiais, segundo o próprio comparativo global, o país ocupa a 117ª posição em número de presos provisórios para cada 100.000 habitantes. Por fim, em meio ao relatório do Infopen encontra-se o percentual de 26% para presos provisórios sem julgamento há mais de 90 dias, critério praticamente similar ao adotado pelos demais países. Por óbvio, pois, o número de presos provisórios não pode ser causa de preocupação para as autoridades brasileiras e os “especialistas”.

As taxas irreais de encarceramento e de presos provisórios apresentadas por meio do Ministério da Justiça, repetidas a todo o momento, lembram a lição de Daniel Huff em “Como Mentir Com Estatística”, quando alertava para o perigo das amostras com “tendenciosidade embutida”, com a finalidade única de manipular a utilização das estatísticas.

Por outro lado, desde 2006 o sítio eletrônico da entidade “Contas Abertas” vem alertando quanto ao contingenciamento de verbas do Fundo Penitenciário Nacional – o que inclusive já fora reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347. Entre 2006 e 2015, o governo federal reduziu praticamente pela metade (49,2%) os gastos com o sistema prisional brasileiro, permitindo que o FUNPEN alcançasse no final de 2016, o saldo positivo de 3,5 bilhões de reais disponíveis para investimento no sistema penitenciário, valores predominantemente oriundos das loterias federais e das taxas administrativas. A conclusão divulgada pela”Contas Abertas”, e outrora reconhecida pelo próprio governo federal, é de que se optou pela utilização do saldo para auxiliar na melhoria do balanço financeiro da União, e não pela melhoria do sistema prisional. Surpreendem, aliás, as declarações de ex-ministro da República que se escandalizava com as prisões brasileiras, nomeando-as de masmorras medievais, enquanto não aplicava vultoso valor à disposição.

Ainda, outro mantra repetido à exaustão refere-se à falência do instituto da prisão. Nesta ordem, declara-se que é autoevidente a falência do cárcere, ante a constatação simplória de que o aumento do número de presos não interferiu na escalada assustadora da criminalidade. Inverte-se de forma bizarra a relação de causa e efeito, segundo a qual a pena é consequência do crime e não o contrário. Ora, com os cerca de 800 mil homicídios registrados apenas entre 2000 e 2015 – dos quais, segundo dados da ENASP, nem 10% resultaram em denúncias – é um verdadeiro escândalo atribuir à pena e não à impunidade o cenário caótico de violência em que ora vivemos.

Apenas a cegueira ideológica, ou malícia pura e simples, impedem alguém de enxergar o óbvio ululante: que a pena detém caráter dissuasório, punitivo e pedagógico (isso sim, autoevidente a quem já teve de educar um filho), não é possível visualizar a desproporcionalidade da pena privativa de liberdade aplicada em solo brasileiro. Como refere sabiamente o grande jurista Edilson Mougenot Bonfim: “de tanto esmiuçarem a árvore, esqueceram-se de observar a floresta”.

A partir de dados esquecidos em meio ao relatório Infopen, denota-se que apenas no segundo semestre de 2014, enquanto 279.912 pessoas ingressaram no sistema prisional, saíram praticamente 200.000 pessoas. Consequentemente, é possível deduzir o que muitos operadores do Direito já percebem no cotidiano forense criminal: que o sistema punitivo brasileiro tornou-se totalmente deficiente em razão da desproporcionalidade da pena.

Após inúmeras mudanças legislativas, iniciadas em 1984 por um sistema progressivo irreal, o sistema prisional assemelha-se a umaporta giratória de criminosos, permitindo-se, com o sangue e o sofrimento de incontáveis vítimas,que um malfeitor tenha de cometer inúmeros crimes para permanecer tempo razoável em regime fechado. Em outras palavras, verifica-se que os condenados criminalmente permanecem pouquíssimo tempo no sistema prisional, o que demonstra a falta do efeito intimidatório/dissuasório inerente à pena de prisão por tempo prolongado, conforme alertava o Nobel Gary Becker.

Cabe aqui a pergunta: por que os órgãos oficiais não colhem dados estatísticos que permitam aferir o tempo médio de prisão no regime fechado de condenados por crimes que interferem diretamente na vida social? Ou ainda, qual o percentual de condenados que sequer iniciam o cumprimento da pena em regime fechado? As perguntas muito provavelmente não são feitas em razão da previsibilidade do resultado assustador que desmascara a falácia da narrativa do encarceramento em massa, patrocinado generosamente por instituições internacionais com interesses espúrios.

Infelizmente, nada disso tem incomodado inúmeros “especialistas” na área, que se dizem preocupados com a cientificidade em suas manifestações, mas se encontram perdidos na lama da ideologia. Conforme salientado na paradigmática obra intitulada “Bandidolatria e Democídio“, escrita pelos promotores de Justiça Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza:


“Transformar o aparato policial e o sistema prisional do país em espantalhos, para em seguida denunciar-lhes a ineficácia e promover sua aniquilação é uma monstruosidade digna dos piores psicopatas. É algo que vem sendo feito de maneira sistemática pelo estamento brasileiro, com um custo de 60 mil vidas por ano”.



(*)Bruno Amorim Carpes é promotor de Justiça do estado do Rio Grande do Sul.
Fonte: midiasemmascara.org

Publicado em puggina.org.