por Rodrigo Constantino (*).
Na mesma época em que Goethe escrevia seu clássico poema trágico Fausto, Jacques Cazotte escrevia Diabo apaixonado, um livrinho que trata basicamente do mesmo tema. Cazotte foi um iluminista que se tornou contrarrevolucionário nos complicados anos da Revolução Francesa, e acabou guilhotinado por isso, como tantos outros. Mas a mensagem de seu livro permanece atual, pois a natureza humana é atemporal.
Trata-se de um texto onírico, parido após um sonho mesmo, segundo o próprio narrador. Ainda segundo o próprio, ele o escreveu por prazer e em parte para a edificação de seus concidadãos, porque é um ser muito moral. E a mensagem é mesmo moralista (ou moralizante, dependendo do ponto de vista).
Alvare é um fidalgo espanhol que trabalha para o rei de Nápoles, e num belo dia, a caminho de sua casa, decide invocar o diabo após uma conversa sobre a cabala com dois amigos. A curiosidade era sua mais forte paixão. Ali tem começo toda a sua aventura maluca que iria mudar sua vida.
Ao aparecer para ele pela primeira vez, o diabo vem em forma horrenda e assustadora, com enorme cabeça de camelo e voz grossa. A pergunta inicial era: Che vuoi? Lacan falaria muito mais tarde sobre esse livro justamente por causa dessa questão intrigante: o que deseja? O que você quer? Você quer o que deseja?
É justamente aí que mora o perigo. Após o medo inicial, Alvare decide mostrar quem manda, e se coloca como o mestre do diabo, ordenando logo de cara que mude sua aparência. A partir de então, todos os seus desejos são atendidos. Ele está num sonho, senhor da situação.
Após oferecer um banquete para os dois amigos do começo, um deles, desconfiado de tantos arranjos especiais, de que há algum segredo por trás daquilo tudo, diz: enfim, você sabe de sua vida, é jovem; na sua idade, deseja-se tudo sem deixar tempo para pensar e só se procura o prazer.
Importante alerta. Que Alvare, naturalmente, prefere ignorar. Como abrir mão de todas as regalias? Seu relacionamento com o diabo, aparentemente seu servo obediente, começa a ficar mais complicado. Ele assume a forma de uma mulher, que Alvare decide chamar de Biondetta. As tentações sobem em escala exponencial:
O ardor de seus olhares tão tocantes, tão suaves, é um cruel veneno. Aquela boca tão bem desenhada, tão colorida, tão fresca e, na aparência, tão ingênua, só se abre para imposturas. Aquele coração, se de fato existia, só se aqueceria para uma traição.
Alvare não pode alegar ignorância: ele sabe com quem está lidando. Ele tem o poder, também, de abrir mão de tudo aquilo, se esse for seu desejo. Mas ele racionaliza o desejo de continuar enfeitiçado: Por que me precipitar e querer logo o que posso querer a qualquer momento do dia? Ele ainda se acha dono da situação, sob pleno controle.
Sua vida se torna cada vez mais desregrada, com jogos e mulheres. Mas tudo isso era atravessado pela culpa e o sentimento de dever, especialmente com relação a sua mãe. Talvez fosse tarde demais. Ele tinha noção do perigo ao usar os serviços daquela criatura: Decididamente, eu não sabia se conseguiria afastá-lo de mim; de qualquer modo, não tinha força para querer isso.
As fugas hedonistas não lhe davam mais tanto prazer. O jogo, o carnaval, os espetáculos, tudo parecia aborrecê-lo. É então que se dá conta da forte paixão por Biondetta, avassaladora. Ao avistar uma igreja em Veneza, entra e se põe a rezar para a mãe, desesperado, ao ver uma estátua semelhante a ela:
Desgraça! Estou devorado pela paixão mais tirânica: não consigo dominá-la. Agora a senhora acaba de falar a meus olhos; fale-me também ao coração e, se devo expulsar tal paixão, ensine-me como fazê-lo sem perder a vida.
Contando sua experiência com o benefício do retrospecto, Alvare revela ao leitor:
Percebo, agora, o que não era capaz de fazer naquele momento, que, em todas as ocasiões em que precisamos de auxílios extraordinários para corrigir nossa conduta, se pedirmos com força, mesmo que não sejamos atendidos, ao menos, ao nos recolhermos para recebê-los, colocamo-nos de modo a empregar todos os recursos de nossa própria prudência.
É uma forma interessante e laica de enxergar a reza. Ulisses, na mitologia grega, apelou para sua prudência ao amarrar as próprias mãos e ordenar que ninguém o soltasse do mastro, independentemente de todos os suplícios e novas ordens ou ameaças, quando decidiu desafiar o canto das sereias. Alvare se dá conta de onde mora o verdadeiro perigo: Sou eu, senhora, o único inimigo perigoso para mim.
O próprio indivíduo é que costuma convidar o diabo a entrar em sua vida. A paixão (que vem de pathos, patologia), as fugas hedonistas, os apetites sem freio, são instrumentos perigosos e tentadores. Biondetta diz a Alvare, ainda tentando seduzi-lo por completo: A espécie a que pertences escapa à verdade: só os tornando cegos é que se consegue que fiquem felizes. Ah! Serás feliz, e muitíssimo, se quiseres! Pretendo dar-te tudo. Já viste que não sou tão nojento quanto dizem.
Alvare consegue escapar até a segurança de sua mãe. Um doutor de Salamanca, entendido no assunto, vem escutar todo o relato da sua aventura onírica, e diz sobre Biondetta ou Belzebu, o que dá no mesmo:
Ela copia a natureza com fidelidade e astúcia; emprega o recurso dos talentos atenciosos, dá festas bem agradáveis, faz que as paixões falem com a linguagem mais sedutora; chega a imitar a virtude até certo ponto. […] Ele o seduziu, é verdade, mas não conseguiu corrompê-lo; suas intenções e seus remorsos o preservaram com as ajudas extraordinárias que recebeu; assim o suposto triunfo dele e a derrota do senhor nada mais foram para o senhor e para ele do que uma ilusão cujo arrependimento acabará por lavar o senhor.
Alvare, muito traumatizado com sua experiência atemorizante, quase decide se enclausurar de vez, virar padre, abandonar a vida das paixões e mulheres, a fim de evitar a tentação do diabo. O doutor de Salamanca aconselha:
Não creio, porém, que a barreira do claustro ou da vocação religiosa seja a que o senhor lhe deva opor. Sua decisão não está nítida; as pessoas que aprenderam pela própria experiência são necessárias no mundo. Creia-me, forme vínculos legítimos com uma pessoa do sexo oposto, que sua respeitável mãe presida à sua escolha: e, se aquela que o senhor receber da mão dela tiver graças e talentos celestes, o senhor jamais será tentado a tomá-la pelo Diabo.
A vida sem as paixões perderia o sal, a graça; por outro lado, uma vida entregue a elas é a garantia de desgraça, destruição. Alvare achava-se senhor, mas era o verdadeiro escravo de seu desejo. A paixão aprisiona. Sua sorte foi carregar a Lei inscrita em si, nas morais e tradições (sua mãe), os limites que vão além de seu próprio apetite insaciável, o que os psicanalistas chamam de castração. O enorme desafio na vida é encontrar um equilíbrio.
(*)Rodrigo Constantino, originalmente publicado no blog da Veja e que misteriosamente sumiu