por Olavo de Carvalho
No debate da TV Futura com o intelectual católico Sidney Silveira, talento superior que mecereria adversários bem melhores, um sr. Ricardo Figueiredo de Castro, professor de História Contemporânea na UFRJ, deu um show de ignorância à altura do que é de se esperar da classe universitária hoje em dia, enquanto seu colega Paulo Domenech Onetto, professor de Filosofia Política na mesma instituição, preferiu caprichar na baixeza e na mendacidade como seria mais próprio de um ministro de Estado.
O primeiro, com aquele olhar de tranqüilidade soberana que dá a qualquer um os ares de uma tremenda autoridade científica, assegurou que “os conservadores de hoje em dia, como os do século XIX, tendem a pensar o processo histórico desde uma perspectiva rígida, formalista, que não aceita a mudança”. Sei o quanto é injusto, cruel e desumano exigir que um professor universitário de hoje em dia conheça alguma coisa, mas, se esse professor de História conhecesse ao menos a história da própria disciplina que leciona, saberia que o senso do tempo, da história e da mutabilidade foi introduzido no pensamento europeu por historiadores e intelectuais conservadores, em reação contra a ideia dos revolucionários de 1789 que, inspirados na física newtoniana, acreditavam numa sociedade moldada segundo os cânones universais e imutáveis da Razão. Os nomes de Georg W. F. Hegel, Edmund Burke, François-René de Chateaubriand, Leopold von Ranke e, mais tarde, os de Jacob Burckhardt e Hippolyte Taine, deveriam bastar – para quem os leu, é claro, o que não é absolutamente o caso – para eliminar qualquer dúvida a respeito.
Já entre os revolucionários, nem mesmo em Karl Marx aparece claramente o senso da “mudança como algo inerente ao processo histórico”, para usar os termos do prof. Figueiredo, já que a visão marxista da história é a de um processo predeterminado por leis tão imutáveis quanto as de Newton, caminhando de fatalidade em fatalidade até desembocar inexoravelmente no socialismo.
A elevação da “mudança” às alturas de mito abrangente e força universal soberana não aparece no pensamento ocidental moderno antes de Nietzsche -- aliás um discípulo de Jacob Burckhardt --, embora tenha tido alguns precursores nas fileiras do anarquismo e também em alguns obscuros representantes da intelectualidade revolucionária russa pré-marxista.
Confiante na sua devota ignorância histórica, o referido sentenciou ainda que os conservadores “tendem a exagerar o papel dos políticos de esquerda na condução do processo de transformação, como se este fosse gerido por pequenos grupos de intelectuais e não algo que faz parte da dinâmica da sociedade”. Ele deveria ter ensinado isso a Lênin, que zombava de todo “espontaneísmo”, como ele o chamava, e enfatizava mais que ninguém o papel da vanguarda revolucionária. Poderia também ter dado lições a Georg Lukács, para o qual a consciência-de-classe do proletariado não era sequer uma realidade presente, mas apenas uma possibilidade abstrata a ser concretizada pela ação da elite. Poderia também passar uns pitos em Antonio Gramsci, para o qual a força criadora da revolução está acima de tudo na elite intelectual. Ou então poderia escrever uma tese de que Lênin, Lukács e Gramsci foram conservadores.
É claro que na sociedade há processos de transformação espontâneos mesclados à ação planejada de grupos políticos. Já escrevi aqui mesmo que a distinção meticulosa desses dois fatores, bem como a análise das suas múltiplas relações e interfusões, é a chave de toda narrativa histórica decente. Mas quererá o prof. Figueiredo dizer que setenta milhões de chineses foram para o beleléu assim sem mais nem menos, por força da mera “dinâmica da sociedade”, sem que alguém no topo do governo ordenasse a sua extinção? Quer dizer que vinte milhões de russos foram morrer no Gulag levados por forças impessoais e anônimas e não por um decreto oficial? Quer dizer que trinta mil vítimas das Farc morreram porque estavam acidentalmente na direção de balas perdidas, e não porque a narcoguerrilha as matasse? Quer dizer que dezessete mil cubanos foram fuzilados por acidente e não por ordem direta de Fidel Castro e Che Guevara? Quer dizer que seis milhões de judeus pereceram no Holocausto por mera coincidência, sem que ninguém no governo alemão decidisse dar cabo deles? Quer ele ignorar que os acontecimentos de maior impacto desde o início do século XX não foram inocentes coincidências espontâneas, mas decisões fatais de elites governantes e grupos ativistas?
Pois já que ele acredita tanto no poder da mudança, deveria saber que a principal mudança histórica dos últimos cem anos foi a criação de meios técnicos de ação que aumentam formidavelmente o poder das elites governantes e dos grupos ativistas bem financiados, reduzindo a população a um estado de inermidade patética.
O professor também afirmou que “não vejo nenhuma animosidade contra os conservadores na universidade brasileira” e que “os comunistas nunca foram hegemônicos no PT”. Tsk, tsk, tsk.
Seu colega, o sr. Paulo Domenech Onetto, também tem algumas opiniões, mas não vêm ao caso. Na ânsia desesperada de dizer algo contra mim, ele afirmou, com ares de quem acreditava mesmo nisso, que tenho à minha volta um pelotão de guarda-costas eletrônicos, que barram todo acesso à minha pessoa na internet, para me proteger de debates. Não ocorreu à criatura que para fazer isso os referidos teriam de violar a minha correspondência e neste caso não seriam meus guarda-costas, e sim espiões. Interessa conhecer as opiniões de um difamador mentecapto incapaz de compreender as suas próprias invencionices?
Publicado no Diário do Comércio.
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