por Paulo Rosenbaum
Nestas últimas semanas o protagonista do evento mais importante para o esporte mundial foi um ciclista. Alienado das modalidades esportivas, exceção ao futebol, a referência mais próxima ao seu sobrenome para mim era a do primeiro astronauta na Lua. Lance Armstrong é um ídolo duplamente ungido pela capacidade de se reerguer. Superou um câncer de testículo e, desde então, resolveu continuar a superação até se sagrar como mito, campeão quase absoluto.
No que consiste a superação? Ir adiante e esquecer-se do que já passou? Saltar acima dos obstáculos? Enfrentar as piores condições e, mesmo assim, não desistir? A indústria filosófica da superação é tão prolífica quanto os conselhos dos livros de autoajuda. A fórmula é fácil. Não discriminando nem contextualizando nada, aconselha-se genericamente. Se pegar, pegou. Acerta-se e erra-se, a esmo.
A indústria filosófica da superação é tão prolífica quanto os conselhos dos livros de autoajuda. Então, uniram-se fisioterapeutas, médicos para atletas de alta performance, indústria de tecnologia, empresários do setor de marketing e da indústria do esporte. Quiseram dar uma mãozinha a Armstrong e a muitos outros em situação análoga. Foi assim que Lance aceitou injeções de hormônio, e, durante anos, se submeteu a permanentes e arriscadas transfusões para limpar os vestígios do doping e, ao mesmo tempo, aumentar sua capacidade de oxigenação durante as provas.
Sob o coro de que o cliente tem sempre razão, e tanto mais quanto mais poder financeiro, não foi difícil encontrar equipes inteiras superespecializadas em saúde (sic) que organizavam, procediam e executavam as peripécias clinicas que levavam o artista ao topo, sem jamais ter sido flagrado nos exames antidoping. Foram mais de 5 mil, todos negativos. Vieram resenhas, entrevistas, editoriais e gente de todo tipo expressando indignação e decepção com o imbatível ex-ídolo. Então, quem é Lance? Um gênio do crime? Um trapaceiro comum? O vencedor de Olimpíadas, aquele que levou quase todas as grandes provas ciclísticas no circuito internacional era mero impostor?
Será?
Discutiu-se de tudo, menos a questão central: a hipocrisia que dirige nossos valores. Será que o moralismo acusatório deve impor seus dentes com tanta facilidade? O Comitê Olímpico Internacional cassou todos os troféus de Armstrong e, preste bastante atenção, não entregou seu primeiro lugar a nenhum daqueles que vinham abaixo. O motivo? Suspeitam que muitos dos demais usavam recursos análogos.
Acompanhando a alta performance, há uma indústria que precisa ganhar de qualquer jeito. Armstrong era o melhor, competindo num meio em que a maioria prefere arriscar a saúde a perder a troféu e, junto com ele, subsídios, fama e o status de celebridade. Aqui, o ponto central para análise. Até onde pretendemos ir com a oferta de circo? O que desejamos ver? Como queremos nos emocionar?
Não só os atletas precisam de superação, a maioria de nós também. O sentido da superação é que não fica claro. Decerto que as mudanças importantes exigiram sacrifícios e os protagonistas sempre foram os que romperam limites, desafiaram o establishment, de certa forma, transgrediram. A ideologia da competição nos levou às mais amargas desigualdades e ao reino sagrado do darwninismo social, conquanto a resposta também não parece ser estimular a alienação ou premiar a inércia.
Incorporamos com perturbadora naturalidade a ideologia da sociedade industrial: alta performance. Essa é a mentalidade dominante. Pois esse motto migrou a tudo e para todos. Das fábricas aos seres humanos, passando pela exploração da natureza e recursos do planeta. O purismo excessivo (a ingenuidade pode ser uma forma de patologia) pede a extinção do ar condicionado e exige que nos contentemos com sua utopia primitiva. Os politicamente adaptados querem mais é que as novas barragens inundem reservas florestais, e bola para a frente. Se a militância ingênua vive o descrédito de um pensamento mítico superado — já que a tecnologia é irreversível — os superadaptados vivem recusando qualquer forma de restrição, racionamento ou autocrítica.
Pagamos para ver pessoas ameaçarem a própria integridade e baterem recordes, encurtar distâncias, derrapar em abismos nevados, ou ter um AVC na pista como aconteceu no final da maratona de uma Olimpíada anos atrás? A narração era evidente: a mesma voz odiosa e ufanista que narra os eventos automobilísticos:
— Que exemplo, e ela não quer ajuda! Paralisada do lado D, mas não quer ajuda!! É isso, essa é a beleza do esporte, senhores!
Pagamos para ver pessoas baterem recordes, encurtar distâncias, derrapar em abismos nevados, ou ter um AVC na pista. Sem mergulhar no pântano que é a avaliação da conduta moral alheia, direto à pergunta que interessa: por que admiramos gente se equilibrando com menos segurança e redes protetoras? O que nos faz exaltar pancadas mais mortais? O que vemos de excitante na vida em risco? Afinal, o que nos rege?
Com disciplina criaremos tantos Lance Armstrong quantos forem necessários e também os destruiremos, com a mesma displicência.
Não há respostas, apenas precisamos continuar pedalando!
Fonte: Pletz.
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