O legado de uma nulidade.
por Luiz Nazario(*)
por Luiz Nazario(*)
Seguindo uma tendência da historiografia alemã de reinserir no panteão da História toda a galeria dos criminosos de massa do nazismo, à maneira de Der Untergang (A queda: as últimas horas de Hitler, 2004), de Oliver Hirschbiegel, com seu singelo crédito final dando conta do destino de cada um dos “heróis” que protagonizaram o pesado dramalhão do Bunker, a acadêmica Heike Görtemaker, doutora em germanística pela Universidade de Indiana e professora da Universidade Livre de Berlim, dispôs-se a exaltar com uma alentada biografia a vida da suposta amante de Hitler.
Uma tarefa bastante ingrata. Afinal, como biografar uma nulidade? E mais: para quê? Hannah Arendt já havia se escandalizado com a moda que viu despontar com o Hitler (1973), de Joachim Fest, de celebrar o ditador em livros-mamutes “à inglesa”, que esmiuçavam em detalhes a vida daquele genocida. Que dizer então do empreendimento de Görtemaker, de esmiuçar em Eva Braun, a vida com Hitler a apagada sombra da estéril acompanhante do genocida?
Nenhum feminismo justifica a empreitada. É um sentimento mal definido que leva a autora a tentar “virar a mesa” da historiografia clássica, que a seu ver só ressaltou a insignificância de Eva Braun. Mas, apesar de sua intensa pesquisa – suas notas, fontes, bibliografia e índices ocupam 100 das 400 páginas do livro –, a autora não encontrou nada de novo que pudesse modificar o quadro.
Eva Braun tinha para Hitler a mesma importância que seu cachorro predileto, o pastor alemão Blondi, no qual ele testou a fatal ampola de cianureto de hidrogênio que daria à “amante” no dia seguinte, a 30 de abril de 1945, quando ambos se mataram no Bunker cercado pelo Exército Vermelho (depois de tomar sua cápsula, o Führer também meteu uma bala na cabeça, para garantir-se um suicídio sem chance de fracasso).
Embora Heike Görtemaker tente provar que Eva Braun seria bem mais que uma criatura fútil e mesquinha, deslumbrada por um poder criminoso, só conseguiu reforçar a tolice de sua personagem, cuja vida se resumiu a esperar pelo ditador, que a tratava como uma privilegiada empregada doméstica ou cadela de estimação.
Ao contrário do que Görtemaker sugere, o sonho evidente de Eva Braun era mesmo viver casada com Hitler após sua “aposentadoria” no planejado palacete de Linz. O ditador só se casou com a suposta “amante” ao ter absoluta certeza de que ela se mataria imediatamente após a cerimônia, conforme haviam diversas vezes ensaiado, para nada saísse errado.
Hitler ditou à secretária Traudl Jung em seu Testamento: “Como, nos anos de luta, eu não me julgava em condições de contrair matrimônio, agora, no fim desta trajetória terrena, decidi desposar a moça que, depois de muitos anos de leal amizade, entrou na cidade já quase sitiada para compartilhar seu destino com o meu. Por desejo meu, é na qualidade de esposa que ela vai comigo para a morte.” (Hitler, apud Görtemaker, p. 298).
Embora a razão disso seja óbvia, Heike Görtemaker insiste em negar que a relação de Hitler com Eva Braun fosse apenas a de um amor platônico, como diversos membros do círculo íntimo do poder nazista asseguraram. Görtemaker mostra-se alheia às teorias sensacionalistas que ressaltaram os problemas sexuais de Hitler: ausência do testículo esquerdo, impotência sexual de fundo psicológico, homossexualidade recalcada, etc. Nenhuma referência a nada disso há em seu livro.
Görtemaker tampouco aborda a visão do amor heterossexual que o futuro ditador expôs na juventude ao seu único amigo, August Kubizek, conforme este relatou em Adolf Hitler, mein Jugendfreund (Adolf Hitler, meu amigo de juventude, 1953), e que se resume no conceito que ele definia como “A Chama da Vida”, em nome da qual os amantes deviam permanecer virgens até o casamento.
A autora prefere acreditar (seu livro é, aliás, cheio de suposições) que Hitler mantinha relações sexuais com Eva Braun, afastando, a partir desse seu parti pris, todos os testemunhos contrários como intrigas da oposição. Interpretando a seu modo a relação entre Hitler e sua “leal amiga”, Görtemaker não percebe o verdadeiro horror da vida de sua “heroína”.
A jovem feiosa ou no máximo “bonitinha”, mas cheia de saúde, estava cegamente apaixonada por um ser repugnante, mas poderoso, e sonhava em casar-se para ser satisfeita e fecundada, realizando o ideal nazista da esposa-mãe proliferante, sendo mantida justamente por aquele que proclamava esse ideal num estado permanente de desejo insatisfeito, esterilizada pela ausência de sexo, sob a vigilância constante da Gestapo, que a impossibilitava de qualquer aventura sexual, dentro ou fora de sua gaiola dourada.
É esse drama digno do mais vetusto e “picante” romance naturalista do século XIX, atualizado para um universo totalitário, cercado de campos de concentração e filmes nazistas vistos e comentados com entusiasmo todas as noites após o jantar, tendo assassinos de massa como companhia, que explica a histeria de Eva Braun, suas duas tentativas de suicídio, seu freqüente mau humor, suas distrações medíocres como fazedora de álbuns de sua vida privada com Hitler. Hoje ela seria uma fanática do Facebook…
Fotógrafa e cineasta amadora de fim de semana, cujos filmes coloridos em 16mm, desprovidos de imaginação, rodados no “ninho de águia” do Berghof em Obersalzberg, foram retomados nos controversos documentários Swastika(Suástica, 1974), de Philippe Mora, e Hitler: Eine Karriere (Hitler: uma carreira, 1977), de Joachim Fest, Eva Braun exibia constrangedora ascendência sobre o homem mais amado e temido da Alemanha, refletindo em microcosmo um regime de extremo sadomasoquismo coletivo.
O poderoso ditador, que se recusava a ficar nu até para uma consulta médica, sentia-se vulnerável diante daquela tolinha que ele amava, e que sabia demais sobre sua intimidade, pelo que a jovem Braun era mantida escondida do público, excluída das recepções oficiais, constantemente vigiada e protegida, quer dizer, isolada, como uma refém, uma presidiária, do mundo exterior.
Por isso também a indiferença patológica de Eva Braun em relação ao sofrimento alheio, ao mundo à sua volta, ao seu próprio fim desgraçado. Depois de viver no luxo sórdido de um poder criminoso, esperando em vão por um sonho impossível, as últimas semanas no fétido Führerbunker de Berlim a fizeram quase feliz, ligada definitivamente ao seu dono, em franca degeneração física e mental: “Estou no lucro”, ela afirmou, ao se fechar naquela claustrofóbica antessala do inferno.
Ao se matar aos 33 anos de idade, após uma vida vazia, preenchida com fofocas palacianas e torpes fantasias românticas alimentadas pelo amado carniceiro, como bem retrata o Moloch (2000), de Aleksander Sokurov, Eva Braun não “assegurou para si um lugar na história, ainda que duvidoso”, como quer a autora, mas sim um não-lugar, incapaz de render uma biografia exclusiva, já que a quase totalidade das páginas de Eva Braun: a vida com Hitler não é dedicada a ela, mas ao ditador e ao seu círculo de assassinos de massa.
Fonte: http://escritorluiznazario.wordpress.com
Fonte: http://escritorluiznazario.wordpress.com
(*)Luiz Nazario
Professor de História do Cinema da Escola de Belas Artes da UFMG, autor de Todos os corpos de Pasolini (Editora Perspectiva) e pesquisador bolsista de produtividade do CNPq com o projeto Cinema e Holocausto.
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