terça-feira, setembro 20, 2016

A abolição das culpas.








por Mario Chainho

Algumas pessoas podem ficar desconsoladas por não ter uma nação como modelo. Mas isto pressupõe uma “mentalidade de escravo”, como diria Aristóteles.




Os intelectuais marxistas são peritos em fazer revisionismo histórico mas parece que muitos conservadores ou “direitistas” estão a tomar-lhe o gosto, dado vislumbrarem alguma necessidade de polirem os seus novos ou velhos ídolos (que até podem ser antagônicos entre si). Este revisionismo é normalmente usado para lavar honras de ideologias, religiões ou países. Mas existe uma diferença. Os revisionistas marxistas não têm pudor em falsificar a História de forma mais ou menos grosseira, abolindo factos e fabricando outros. Já os revisionistas da direita preferem entrar numa toada mais “relativista” com a intenção de diluir culpas. Note-se que não estou a falar de negacionistas do Holocausto ou de outras bestas do gênero mas de uma pretensa nova massa de pessoas que se quer substituir à esquerda dominante mas que se encontra notavelmente perdida por ter demasiada vontade de actuar e pouca de estudar.

A direita emergente parece ter uma certa necessidade de enaltecer alguma nação que sirva de modelo e onde também se depositam algumas esperanças na salvação futura. Neste momento, muitos ainda olham os EUA como um farol do mundo, sobretudo pelos feitos passados, e esperam que os EUA restabeleçam uma nova ordem internacional menos dominada pelo esquerdismo, seja pelo comando de Donald Trump ou por alguma outra figura que venha a aparecer. Outros, demasiado desiludidos pelo declínio ocidental, acham que apenas a Rússia pode defender a cristandade e evitar o seu colapso pelas mãos do modernismo e dos muçulmanos radicais. Futuramente irei discutir se estas pretensões têm alguma razão de ser, mas para já apenas pretendo descrever um processo de branqueamento de culpas, mais ou menos inocente, que decorre acerca destas duas nações. Comecemos pelo caso russo.

É inegável que a atuação da Rússia no séc. XX foi de uma monstruosidade aterradora. Não foram apenas as purgas, o Gulag, as deportações, mas também as anexações de países vizinhos, a infiltração de agentes no mundo inteiro, o financiamento e instrumentalização de movimentos revolucionários e até terroristas no Ocidente, o que se deu nos mais diversos domínios (estatal, jornalístico e até religioso). Não é um grande currículo para quem quer fazer da Rússia uma espécie de salvadora do mundo, pelo que alguns acham que encontraram uma saída airosa: Os “erros da Rússia” não são mais do que a consequência daquilo que o Ocidente exportou para lá. Ou seja, os russos foram contaminados pela Revolução Francesa, pelo marxismo de origem germânica, e as potências ocidentais até financiaram os bolcheviques em certos momentos-chave, e a consequência disto tudo foram os erros da Rússia que acabaram por se espalhar pelo mundo.

Aparentemente não existe aqui nenhum revisionismo, porque os factos não são negados e, ainda por cima, até são contextualizados. Acontece que isto não é posto como uma reflexão de alto nível, que tenta fazer sobressair as causas profundas ou propiciadoras dos eventos, mas é apresentado quase como se fosse uma explicação mecânica de causa-efeito. Assim, até parece que os russos estavam em paz nos seu canto mas, de repente, foram infectados por um vírus vindo do Ocidente e desenvolveram uma patologia que depois voltou-se contra os locais de onde o “vírus” tinha vindo.

Se a coisa tivesse sido assim tão linear, era logo caso para perguntar se faz faz algum sentido depositar hoje tantas esperanças na Rússia, dado que eles no passado teriam sido uma meras vítimas inermes. Quem garante que no futuro eles não vão ser manobrados por chineses os pelos proponentes do Grande Califado? Assim, a justificação vai contra a imagem de força e de liderança que alguns querem transmitir acerca da Rússia. Uma pergunta mais básica consiste em saber se temos alguma prova ou até indício de que a Rússia já deixou de espalhar os seus erros e passou a uma fase “redentora” da humanidade. Talvez alguns achem que a ideia de Aleksandr Dugin de levar a “grande guerra dos continentes” para a sua derradeira fase já faça parte desta redenção.

Em segundo lugar, existe um elemento de fraude quando se alega que certas ideias ocidentais penetraram na Rússia e a corromperam. As ideias não são como exércitos em movimento que forçam a sua passagem e impõem a sua vontade aos vencidos. Além do mais, no séc. XIX a difusão de livros, notícias, assim como a movimentação de pessoas não ocorria com a velocidade e facilidade que existe hoje. Aquelas elites revolucionárias russas que vemos retratadas por Dostoievsky na realidade não recebiam uma influência de forma passiva mas buscavam ativamente imbuir-se de certas ideias. Não era inevitável que fossem buscar do Ocidente apenas a influência socialista e a da Revolução Francesa. Podiam ter também olhado para Edmund Burke, para Benjamin Disraeli, para as revoluções americana e industrial, para o liberalismo econômico, até para o próprio Aristóteles, que via as suas obras terem uma edição de referência, para a neo-escolástica, para Schelling, para a filosofia do espírito dos franceses e assim por diante.

Em suma: se os russos deixaram se influenciar apenas por aquilo que havia de pior no Ocidente foi porque eles mesmo assim o quiseram, dado serem as únicas coisas para os quais eles tinham apetência. Mesmo o alheamento ou mesmo apoio que potências ocidentais deram à Revolução Russa, também verificado em outras etapas da construção da União Soviética, não explica mecanicamente naquilo que esta se tornou. Se ali foi construído um Estado brutal e autoritário foi porque os russos já admiravam essas “qualidades”, e o próprio Aleksandr Dugin de certa forma valida esta ideia. É natural que sociedades assim façam despertar certas personalidade heroicas, mas isso não quer dizer que o povo russo seja heróico. Como acontece com todos os povos, os russo têm uma cota parte de heróis e outra de facínoras, e no meio permanece uma imensa maça daqueles que simplesmente não compreendem o que se passa e simplesmente aceitam tudo porque nem lhes passa pela cabeça que podiam não aceitar.

Com estas colocações podemos analisar a limpeza de culpas dos EUA mais rapidamente. Quando lemos um livro como 'American Betrayal”, de Diana West, ficamos assoberbados com a forma como o país foi dominado durante décadas por agentes soviéticos, e mesmo hoje continua a ser largamente governado desde fora. Assim, podemos ser tentados a concluir, no final, que no fundo a culpa foi da KGB. Mas não, os erros dos EUA são mesmo dos EUA. Na Segunda Guerra Mundial a administração Roosevelt tinha como prioridade máxima o apoio aos soviéticos, o que por diversas vezes prejudicou os britânicos. Também não podemos esquecer que sem a conivência dos norte-americanos os impérios coloniais europeus não tinham caído para mãos comunistas. Existe um sem número de disparates na política externa dos EUA que não podem ser simplesmente jogados para debaixo do tapete.

Acresce que os norte-americanos americanos foram avisados diversas vezes da influência comunista na política americana. O caso do senador Joseph MacCarthy é apenas o mais conhecido, e a própria Diana West assume que corre o papel de ser mais uma Cassandra que não será acreditada por mais verdades que diga. Então, os norte-americanos têm uma tal confiança no seu sistema político que os leva a ter um orgulho psicótico que não recua ante a mais cabal exposição dos factos. Isto chegou a uma extremo inimaginável quando um farsante de quinta categoria como Obama conseguiu se fazer eleger por duas vezes para a presidência.

Existe também toda uma série de erros dos EUA ligados à guerra cultural, seja através da comunicação social, de Hollywood, da industria do espetáculo e assim por diante. Claro que a Escola de Frankfurt teve influência nisso, e a KGB também deu o seu contributo, assim como a ONU. Mas o orgulho quase demoníaco dos americanos no 'free speach' leva-os a acolher todo o tipo de porcarias como isso não tivesse consequências. O problema da liberdade de expressão já tinha sido sinalizado por Platão no diálogo 'Górgias', onde Sócrates não recusa que os sofistas se pronunciem mas também não abdica do seu “direito” de não ouvir. Contudo, num cenário em que os novos sofistas dominam jornais, escolas e a indústria de ficção, o direito de não ouvir reduz-se a quase nada. A liberdade de expressão é um conceito que faz sentido quando pessoas de carne e osso estão umas perante as outras. Mas hoje o cidadão anónimo encontra-se perante uma entidade quase divina e proteiforme – uma hidra com várias cabeças: o herói do cinema, a notícia na TV, a estrela pop e assim por diante – contra o qual ele nada pode e que o domina quase por completo. Em grande parte, temos que atribuir aos EUA este estado de coisas.

O processo de desculpabilização a que me venho referindo só funciona porque não é apresentado como tal, ou suscitaria uma imediata contestação. É um truque de ilusionista que visa desviar as atenções. Por exemplo, quando se aponta um erro à Rússia alguém pode logo dizer que os americanos também fizeram isto e aquilo, e vice-versa. A outra forma de desculpabilização ou revisionismo, que me concentrei aqui, tenta desviar a atenção através de uma espécie de vitimização. Os factos não são negados, mas postos “no contexto”, embora na verdade o que acontece é uma mudança sub-reptícia no enfoque no discurso.

Algumas pessoas podem ficar desconsoladas por não ter uma nação como modelo. Mas isto pressupõe uma “mentalidade de escravo”, como diria Aristóteles, ou seja, uma necessidade imperiosa de ser comandado por alguém. É fácil perceber que quando um povo tem esta necessidade é como se estivesse a dizer que não tem grande razão de existir e que deve ser assimilado pelo seu modelo de referência.




Fonte: Mídia Sem Máscara




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