por Luis Dufaur (*)
O cristianismo é promovido apenas enquanto instrumento domínio político |
O historiador francês Philippe Fabry registrou em seu blog uma estranha contradição em seu país. Políticos e jornalistas que oscilam entre os partidos de direita passaram repentinamente a ecoar uma imagem que parece ter sido mandada fazer pelo Kremlin.
Entre eles, cita o político e ensaísta Yvan Blot, que passou a defender que o regime de Putin é o guardião dos valores tradicionais do cristianismo e da família, e que a “nova Rússia” seria uma espécie de baluarte no qual o Ocidente deve se apoiar para não afundar na decadência.
Fabry relembra então alguns dados de conhecimento geral que são omitidos por essa visualização:
— a “nova Rússia” pseudo-cristã, cuja população é mais do que o dobro da francesa, aborta proporcionalmente duas vezes mais crianças (800 mil por ano) do que a França laicista (200 mil).
— a “nova Rússia” é o primeiro consumidor mundial de heroína. Embora esse extenso país represente apenas 2% da população mundial, consome 21% da produção planetária dessa droga pesada. Trata-se de uma herança recebida por Putin, mas não se tem notícia de que ele aja eficazmente para extirpar o vício que devora a nação.
— o desmantalamento da família está provocando uma catástrofe demográfica: a população russa – mais de 140 milhões – ruma para 80 milhões de habitantes por volta de 2050, segundo as projeções.
— os índices econômicos da Rússia de Putin neste século, após um momento episódico de euforia pela alta do petróleo, afundam hoje assustadoramente. A Providência dotou a Rússia de insondáveis recursos materiais. No entanto, o problema é o coletivismo soviético, que continua de pé. E sobre essa estrutura socialista reina a nomenklatura da “nova Rússia”, uma das mais corruptas do mundo.
Costumes cristãos estão sendo achincalhados com objetivos políticos. |
Por que essas figuras da direita francesa, tão dignas de respeito, caíram no conto de uma propaganda povoada de fantasmas tão contrários à realidade?
A pergunta de Fabry suscitou comentários. Sobre a calamitosa situação moral da Rússia, Robert Marchenoir observou que
“de fato, a Igreja ortodoxa russa é na prática uma dependência do FSB (ex-KGB), que professa uma concepção da religião próxima à do Islã e oposta ao catolicismo e ao protestantismo; é uma correia de transmissão fanática e supersticiosa do poder político (...). A causa não é uma influência do Islã, mas está ligada ao cisma bizantino, (...) à irracionalidade russa, e ao papel do clero ortodoxo na história da Rússia”.
Outro comentarista acrescentou que a
“Igreja Ortodoxa Russa não tem mais nada a ver com o cristianismo, é uma religião consagrada ao culto do Estado russo. O próprio Kirill [patriarca de Moscou] declarava nos anos 90 que sua igreja tinha necessidade de se reformar para se separar da KGB, mas depois mudou de opinião”.
Essas afirmações sobre o Patriarcado de Moscou ajudam a compreender a descristianização geral no interior da Rússia, mas não chegam a explicar por que políticos de direita no Ocidente vejam na “nova Rússia” um modelo de cristianismo.
A irrigação desses setores direitistas com dinheiro russo, com quantias por vezes milionárias, é uma das explicações comumente apontadas.
As máquinas de financiamento que funcionam no Ocidente em geral visam marginalizar as direitas, suas organizações, seus intelectuais e representantes. Compreende-se que, em decorrência disso, se sentindo objetivamente injustiçadas e aparecendo uma sedutora proposta, possam ter caído.
O exemplo mais citado é o empréstimo de 9 milhões de euros, feito em 2014 ao Front National francês por um banco russo de estrita observância à vontade de Putin.
Culto da personalidade de Putin reedita o culto a Stalin, instrumentalizando e desvirtuando o cristianismo. |
Mas Cécile Vaissié, professora de estudos russos e soviéticos da Universidade Rennes 2, em seu extenso livro Les réseaux du Kremlin en France, publicado em 2016, apresenta uma interpretação mais complexa e rica.
De fato, a Rússia consagra anualmente 3,5 bilhões de euros para a sua propaganda. E, ao fazê-lo, segundo a professora, “o Kremlin utiliza os velhos métodos da KGB: prefere promover sua imagem internacional, ao mesmo tempo em que reprime a população russa”.
O Kremlin visa expandir as “igrejas ortodoxas” de acordo com um projeto em nada religioso, mas completamente político.
“Tudo o que está ligado à igreja ortodoxa russa (mais conhecida como ‘Patriarcado de Moscou’) é político.
“Na chefia dessa igreja se encontram dignitários que trabalharam para a KGB na época soviética”, explica.
Hoje, acrescenta a professora, Putin se serve dela. Na Rússia, a ortodoxia é uma ideologia de estado, antidemocrática e antiocidental.
A partir dos anos 1920 a diáspora russa rompeu com o Patriarcado de Moscou, porque este dependia do Kremlin, o senhor temporal comunista ou nostálgico do comunismo que define os princípios pastorais e religiosos, bem como a nomeação dos clérigos.
O Patriarcado de Moscou foi criado em 1589 pelo czar da Rússia, que queria um apoio religioso para expandir seu império até o Mediterrâneo.
Dito Patriarcado foi suprimido pelo czar Pedro o Grande em 1721, e reconstituído em 1917 após a Revolução Comunista de Lênin.
Desde então ele vem servindo ao ditador marxista de turno que o fechou em 1925. Stalin o restaurou em 1943, após os bispos “ortodoxos” jurarem fidelidade absoluta ao regime e aos interesses soviéticos.
Segundo explicou a professora Vaissié ao Médiapart, o resultado é que a propaganda russa montou no Ocidente uma imagem “que não tem nada a ver com a Rússia real".
“Esse falso imaginário faz crer que a Rússia seria a ‘Santa Rússia’ de outrora, que defende as tradições familiares e cristãs.
“Essas tradições familiares foram imensamente destruídas na Rússia, elas são muito mais vivas na França. O cristianismo foi enormemente destruído na Rússia” – completou.
Prof.a Cécile Vaissié: as redes do Kremlin na França:
(*)Luis Dufaur é escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO e webmaster de diversos blogs.
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