A COMUNHÃO DE METÁFORAS: ENQUANTO HITLER ENCOMENDAVA A GOEBBELS FILMES SOBRE JUDEUS OS EQUIPARANDO A RATOS, FELIPE NETO FALA QUE SEUS ANTAGONISTAS SÃO COMO RATOS QUE SAÍRAM DO ESGOTO DA OPINIÃO PÚBLICA. O BRASIL ÀS PORTAS DO MACARTHISMO DE SINAIS INVERTIDOS.
O que nós judeus temos a dizer a respeito do ideário da desumanização ideológica.
Hitler insistia com Goebbels que a produção cinematográfica alemã colocasse imagens de ratos os equiparando aos judeus. O filme produzido foi “O Eterno Judeu” (Der Ewige Jude), de caráter documental, onde aparecem imagens de ratos saindo dos esgotos ao que se segue uma multidão de judeus nas ruas. O asco encomendado servia a instigar um antissemitismo popular, instintivo (e como tal não elaborado), impelido pela repugnância, num contraste com a pretensa super-humanidade da raça de “Apolos loiros arianos”. A construção do mito depreciativo de judeus processava-se por uma união entre a antiética e a estética.
É com tristeza que vemos assomar-se uma figura que salta das fraldas para encarnar a cultura de desumanização das individualidades que se opõem aos ideários que assimilou por osmose irascível, muito mais que pela reflexão. Tal figura acena com um macarthismo de sinais invertidos, no qual se empreende denuncismo persecutório, mobilização de investigações espetacularistas, com conteúdo apenas bilioso em suas imprecações. O nome deste personagem: Felipe Neto.
Em entrevista à Globonews, em 02/08/2020, Felipe Neto foi questionado por Cristiana Lôbo sobre se ele sentar-se-ia com representantes da direita bolsonarista (que ela tenta reduzir a “blogueiros”), com o fito de discutir o projeto de lei sobre as famigeradas “fake news” na Câmara dos Deputados.
Felipe não se conteve e discriminou seus antagonistas como pessoas que sempre ficaram no “esgoto da opinião pública”, dizendo:
“Eu não me sentaria da mesma forma que eu não aceito aparecer na CNN Brasil pela mesma razão. É... a gente está vivendo um momento hoje no Brasil inteiro onde a gente está lidando com a validação do negacionismo, a validação do obscurantismo, a validação de pessoas e ideias que sempre ficaram no esgoto da opinião pública. E que de repente saíram dos esgotos, como ratos pela cidade, de uma forma tão violenta e grotesca, que saíram contaminando todo mundo”.
Entendam: aqueles a quem ele se refere como pessoas sem direito a serem ouvidas querendo as transformar em subcultura, separando-as de uma direita tolerável, são, ao contrário do que ele pretende, pessoas que emergiram com um discurso dissidente eficaz e profundo, aquelas que defenderam uma axiologia da eternidade como bases de nossa civilização judaico-cristã; são as que foram capazes de fazer prosperar a contrarrevolução ao discurso relativista pelo qual fundou-se um humanismo constituído como o contrário do divino, um humanismo que dita as regras subvertendo a possibilidade de standards morais, um humanismo que quer o homem como a medida de todas as coisas.
Felipe quer perfilar os inimigos como infra-humanos políticos na medida em que os chama de ratos, que, como ele mesmo sinaliza, só tiveram destaque porque não haviam aparecido jornalistas competentes... Nos alvos das fantasmagorias que povoam sua mente estão aqueles a quem não deve ser dado ocupar a tribuna e menos ainda o púlpito da nova religião política, na qual a virtude é encaixotada nos estreitos dos valores progressistas que defende.
O seu programa de eliminação começa, assim, na supressão da dignidade intelectual dos adversários, que, segundo ele, nunca deveriam ter sido ouvidos. Quando pensamos em alguém sem conteúdo para ser levado a sério, este é o limite natural da liberdade de expressão, pois, simplesmente ninguém escuta aquela pessoa, sem necessidade de reprimi-la, como quer fazer Felipe Neto com os que chama de “ratos”. Sabemos que não ter mérito para ser escutado seria o caso do próprio Felipe Neto, não fossem seus milhões de reais e milhões de seguidores infanto-juvenis, gerando um capital de prestígio que ele prostitui para a sua agenda política.
Porém, pese sua falta de mérito intelectual, não rimos dele nem o deixamos de escutar, pois a cautela exige que prestemos atenção ao fenômeno, pois, esta narrativa pode sair do controle doa minguados personagens como Felipe e resultar em algo muito pior do que ele almeja, fazendo-nos reféns de psicose coletiva incontrolável. Recordamos aqui que o desprezo pode armar ciladas, bastando lembrar que Hitler foi menoscabado pela intelectualidade de sua época enquanto vertia sua miscelânea de Spengler com esoterismo romântico, assim como, pari passu, Mao em sua “revolução cultural” abrigava a histeria que resultaria em algo muito parecido com aquilo que quer fazer a mídia mundial agora (ler “Mao a História Desconhecida”, de Jon Halliday e Jung Chang).
Atrabiliariamente o youtuber converte o seu simplismo aos propósitos de comunicação de massas, hipnotiza jornalistas e ouvintes que não sabem processar devidamente o que escutam, assim como o público que paradoxalmente diz querer educar digitalmente; estes profissionais da imprensa o ouvem sem capacidade de se escandalizar com a nova ordem dos excluídos, ficam passivos, com olhar estupidificado ante a abominação da segregação prévia, censura prévia, enfim, a couraça da mordaça virtual que quer costurar.
Persegue patrocinadores de cursos de história ministrados pela direita, litiga contra o revisionismo sem dizer se o que chama de revisionismo são teorias apócrifas sem lastro sério ou simplesmente as contestações do seu parco ideário, coloca uma massa de advogados para processar todos os que possa; reclama de direitos autorais sobre vídeos que se emparelham, em valor cultural, com as produções da “A Princesa Xuxa e os Trapalhões”, como se alguém ambicionasse valer-se delas para locupletar-se, quando todos apenas expõem trechos de vídeos seus para exercer a crítica do ridículo que neles se flagra.
Não se sabe em que rincão da esquerda perdeu-se o corpo jurídico do Facebook e do Youtube (Google) que desconhece a lei 9.610/98, a qual, nos incisos III e VIII do art. 46, capitula como não ofensivas ao direito autoral a exposição de trechos para "crítica ou polêmica", aplicando-se isto às obras audiovisuais (inciso VIII, "i" do art. 5º). Estamos à disposição daqueles que queiram volatizar esta piada jurídica utilizada neste intento censor mambembe.
Tal como a dança de Chaplin com o Globo, Felipe sente que ganhou o mundo como um brinquedo que o fará passar de calças curtas pelo átrio dos grandes, acreditando-se – pasme-se! – como aquele que será o contrafluxo das ideias no mundo digital, mas não pelos argumentos e sim pela articulação com os donos do poder. Estará militando nisto com congressistas e flerta com os atos de império travestidos de hermenêutica pelo STF, glamurizando uma censura soteriológica. Concede entrevistas, ocupa jornais e almeja, como sempre, a assepsia política, a cunhagem do apartheid ideológico.
O precário recorte histórico do qual é capaz retrocede apenas ao aparecimento de Olavo de Carvalho. Se for pedido que cite outros nomes do pensamento conservador teremos a nítida e constrangedora impressão de que o balaio vazio onde cabe a sua biblioteca nos informará que bastaria imolar o citado pensador para consertar o mundo.
A história, para ele, portanto, ia muito bem até aparecer Olavo como “seu diabo exclusivo”, que cita em todas as suas diatribes, raiz do desvio pelo qual o mundo separou-se do “bom caminho” gerando uma legião de “luciferinos de direita”. Logo, então, vem ele como o grande Messias que reverterá o mal mediante o silenciamento dos “demônios extremistas”, diligenciará para tirar do ar vídeos do filósofo e da direita em geral, tudo sob essa bandeira caricatural.
Sua curta régua cronológica não permite vislumbrar a engrenagem contra a qual reagiram não só Olavo, mas uma plêiade de outros filósofos. A obsessão monotemática com Olavo é, muito embora tenha este uma importância extraordinária, um distintivo da pouca leitura do adolescente tardio.
Ou seja, no fantástico mundo em que Felipe vive, não houve, antes, justamente o contrário, a saber, a esquerda capturando toda a cultura mediante décadas de doutrinação e loteamento político. Neste mundo fantasista Felipe não é apenas uma marionete frankfurtiana, sendo, por tal razão, que prefere não contemplar os fatos históricos em sua completude, pois, diante desta realidade, não teria como escapar da condição de mero lugar comum, diferenciando-se de tantos outros apenas pelos holofotes milionários que possui. Deste modo, Felipe prefere acreditar em sua própria fantasia de que Deus criou o mundo na data de nascimento de Olavo e tenha ele, Felipe, a missão de salvar a todos como o “imberbe mancebo montado num cavalo branco”, que abre o caminho com a “boa-nova” reativa.
Falemos mais objetivamente, agora, sem ironias ou gracejos. Felipe labora no domínio da estreiteza que permite estereotipar inimigos do mesmo modo que antes estigmatizaram raças, mas Felipe não pratica o racismo contra adversários; no lugar disto Felipe os marginaliza ideologicamente para suprimir-lhes a dignidade humana na qual se encontra a capacidade de repensar o establishment. Segundo ele, esses inimigos são apenas ratos oportunistas cujas ideias cabem naquilo que seu raquitismo intelectual quer emoldurar.
Diferentemente do que, na escassez cultural, proclamam de forma barateada aqueles que alegam, como Felipe, a existência de um obscurantismo redivivo, mal sabendo que a grande maioria dos filósofos foi religiosa e metafísica, a dignidade humana é uma emanação direta do conceito de imago-Dei no judeo cristianismo, engendrando a ideia de que o homem, por guardar uma imagem e semelhança para com Deus, desfruta de um status especial na Criação que o consubstancia com o Criador, residindo aí a ideia teológica de “persona”, não podendo, portanto, ser coisa entre coisas, como compraz ao universo valorativo da esquerda.
Desumanizar para alijar, reduzindo a dignidade humana de um certo grupo, é uma das tragédias recorrentes na aventura da humanidade; esta ideia sempre aparece para prover os interesses mais espúrios com justificativas inferiorizantes que agora, como vemos, têm como alvo e vítimas não a raça ou a etnia, mas a simples identidade ideológica, aqueles cujo lugar no debate deve ser negado.
O que nós, judeus, devemos dizer de tudo isso? O que nós, judeus, temos a dizer de Felipe Neto nestas suas palavras? Sem dúvida sentimo-nos espelhados naqueles que ele ataca ao previamente querer a “desratização política da sociedade” os desumanizando.
É inevitável que os judeus estejam contra ele pela simples comunhão de metáforas com Goebbels ao empregar a imagem de ratos para adversários políticos, ainda que, diferentemente deste último, Felipe não tenha utilizado tal imagem para designar raça. Sempre estaremos irmanados com os que são silenciados à força pelos incapazes de enfrentar a esgrima da verdade, sempre estaremos em uníssono com o silêncio dos reprimidos, já conhecemos desde séculos atrás as infames associações entre judeus e ratos, judeus e a peste negra, o mal, etc., para podermos nos alinhar com quem diz o que Felipe disse.
As palavras de Felipe acima reproduzidas na entrevista à Globo News, são o verdadeiro discurso do ódio, que se, ao contrário, houvesse saído da boca de algum bolsonarista célebre, estaria este exposto à execração em todos os jornais. É por imoralidade consentida e seletiva que se admite o descalabro que é alguém dizer uma coisa dessas e nada acontecer. Ele, Felipe, é que deveria passar a ser conhecido como um dos expoentes do discurso de ódio a partir desta fala. Quem usa uma metáfora goebbeliana dessas contra adversários, amanhã poderá utilizá-la contra nós, judeus, pelo que nesta missiva cabe a conhecida e sempre oportuna lembrança do alerta de Eduardo Alves da Costa:
"Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história
Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim e não dizemos nada
Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada
até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta, e porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada".
Esta é a forma e o nome do nosso NÃO, como judeus, a Felipe Neto.
Félix Soibelman
Presidente da ASBI – Associação Sionista Brasil-Israel
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