Por: Felipe Atxa
Chupados todos os caroços, é hora de reformar a lei de incentivo fiscal para a cultura (Lei Rouanet). Hora, também, de trocar erros antigos por erros novos, de fechar o cerco, de promover o “empowerment” do aparato cultural do governo.
A Lei Rouanet deve mudar este ano. Proposta elaborada pelo deputado petista de Pernambuco Pedro Eugênio tramita na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados. O governo Dilma apoia o projeto. Produtores culturais dividem-se em relação a seus pontos polêmicos.
A única “vantagem” existente na lei atual desaparece, virtualmente, se a lei for reformada: a liberdade que os produtores culturais tinham de viabilizar projetos sem depender de uma aprovação subjetiva dos burocratas do Ministério da Cultura. Pelo mecanismo atual, qualquer produtor poderia, teoricamente, elaborar um projeto, habilitar-se juridicamente, arrumar um patrocinador por conta própria e levar adiante sem depender da simpatia de militantes esquerdistas. É bem verdade que, ainda assim, 99% dos projetos são parecidos entre si porque os departamentos de marketing das empresas também estão repletos de militantes esquerdistas. Mas havia o 1% que efetivamente desaparece com as alterações propostas.
Algumas das principais críticas feitas à lei conforme funciona hoje e listadas por grandes jornais são a “concentração regional” (mais de 60% dos projetos acontecem no Sudeste); o “excesso de poder” nas mãos das empresas (que escolhem com certa liberdade o que fazer com um dinheiro que não lhes pertence, da renúncia fiscal) e a “baixíssima contrapartida” de recursos privados nos projetos (que não chega a 10% do total).
Das três críticas, apenas a primeira é infundada: há mais projetos realizados no Sudeste em semelhante proporção àqueles que são apresentados ao MinC. Além do motivo óbvio de que há muito mais produtores culturais atuantes nessa região, aquela que também mais contribui com tributos. As outras críticas procedem, embora por motivações erradas. O poder que as empresas têm de definir a destinação de um dinheiro que não lhes pertence é ilegítimo porque o próprio conceito envolvido no incentivo estatal à cultura carece de legitimidade: obriga-se, através dele, que contribuintes desavisados e desinformados sejam indiretamente obrigados a financiar a disseminação de ideias com as quais possivelmente não concordam, ou que na melhor das hipóteses simplesmente ignoram. Da mesma forma, a contrapartida deveria ser não apenas “maior”, mas total: com os financiadores (quem quer que sejam) pagando integralmente por projetos nos quais acreditam.
Porém, a motivação das críticas é outra, bem diferente. O objetivo é diminuir o poder das empresas aumentando o da burocracia. A simples hipótese, por exemplo, de um filme com críticas contundentes e declaradas ao governo – se hoje já é reduzida – desaparece completamente ao submeter os projetos a qualquer crivo subjetivo do Ministério. E a tal exigência de maior contrapartida é um truque: essa possibilidade sempre existiu, mas o fato é que, numa cultura onde o dinheiro do Estado financia uma parcela significativa das produções, a tendência predominante e gradualmente hegemônica é que as produções enquadrem-se cada vez mais dentro das exigências para obter a maior parcela possível de incentivo, e a tal contrapartida (o “dinheiro privado” que deveria co-financiar os projetos) vire pó-de-pirlimpimpim.
Na prática, a nova Lei Rouanet com as mudanças propostas pelo PT traz três consequências imediatas:
1-Aumenta o poder do governo e da burocracia sobre os projetos apresentados. Em teoria, estes serão avaliados quanto à sua “viabilidade comercial”. Os mais viáveis ganham menor incentivo, e os menos viáveis maior. Na prática, pode-se prever a amplitude de tal critério: propaganda ideológica do MST considerada “pouco viável”, peça de teatro sem conteúdo ideológico marxista “muito viável” – o primeiro ganhando um caminhão de incentivo, o segundo jogado às feras do “mercado” (troque a palavra “incentivo” por “dinheiro” se preferir).
2-Facilita ao nível da letargia a vida dos produtores culturais sintonizados com o governo, com a burocracia e com as “comissões” de avaliação dos projetos. Produtores com projetos de “baixa viabilidade comercial” ganham 100% de incentivo fiscal – ou seja, a cada 100 reais que uma empresa investir neles recebe em troca os mesmos 100 reais de desconto no imposto a recolher. Produtores mais “comerciais” precisam convencer empresas preguiçosas e acostumadas a não gastar nada nos patrocínios culturais a começar a gastar 50 reais de cada 100 investidos, por exemplo. Para quais projetos você acha que as empresas irão correr?
3-Finalmente, esmaga os pequenos produtores, os realmente independentes e aqueles que não aceitam fazer política ou proselitismo disfarçado de cultura.
Pela nova lei, a produção cultural fica dividida em três blocos nítidos: o bloco dos “inviáveis”, com amplo acesso no governo e na burocracia, incentivados em 100%; o bloco dos “viáveis”, com suas grandes produções indo buscar dinheiro nas maiores empresas, estatais e concessionárias de serviços públicos, compensando os 50% faltantes com estrelas globais; e o bloco dos “rejeitados”, sem contato no governo, sem entrada nas estatais, sofrendo a desleal concorrência de quem compete usando dinheiro público numa batalha que deveria ser privada.
Antes que algum militante levante-se, indignado, alegando que as tais “comissões” de avaliação dos projetos serão compostas por representantes da “sociedade civil”, e não serão politizadas diretamente pelo governo, uma lembrança: a politização e partidarização já atinge profundamente tais entidades da “sociedade civil”, ONGs e sindicatos aparelhados e funcionando como braços auxiliares de partidos e projetos políticos – como de resto esses mesmas entidades não fazem questão alguma de esconder. Ou alguém imagina que uma entidade “cristã”, “conservadora” ou “liberal” irá mandar seus representantes para ajudar a avaliar os projetos?
Em resumo: lei nova, subterfúgios antigos. Solução? A ideal seria que o Estado jamais se envolvesse em qualquer tipo de patrocínio ou “incentivo” à produção cultural, deixando a cargo da sociedade e dos indivíduos a liberdade de financiar, produzir ou assistir aquilo que bem entendem segundo seus próprios recursos. A possível: converter cada centavo que sai do orçamento público como “dinheiro para a cultura” em empréstimo reembolsável (como uma linha de crédito comum). Pegou 100 reais, paga 100 reais mais juros e correção de volta. Não pagou? Fica devendo, como um brasileiro comum.
Não vai ser assim a nova Lei Rouanet? Pois é: erraram de novo.
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