por Luis Dufaur.
Jeanne Smits, ex-diretora de redação e ex-gerente de “Présent”, jornal que funciona como porta-voz oficioso do Front National de Marine Le Pen, conhece bem os meandros dos movimentos da direita europeia.
Como jornalista, participou em Paris do colóquio ‘O Ocidente contra a Europa’, organizado pela Sofrade (Société française de démographie) e presidido singularmente de Moscou por Fabrice Sorlin. O evento se realizou em 1º de abril no auditório da Maison de la Chimie com a presença de movimentos de países europeus e sobretudo da “Grande Rússia”.
Jeanne Smits apresentou um pormenorizado relato em seu site reinformation.tv.
Ela queria saber de onde provém a admiração por Vladimir Putin de amigos seus, pertencentes a grupos identitários, soberanistas e anti-imigração, que julgam ver no ex-coronel da KGB um líder defensor da família, uma muralha contra o liberalismo americano, o terrorismo islâmico, etc.
O fenômeno é tão singular que, segundo a jornalista, dez dias antes das eleições, em plena campanha presidencial, Marine Le Pen foi procurar “uma forma de sagração por Vladimir Putin em Moscou”.
O gesto foi qualificado como “corajoso e bem-vindo” por Philippe de Villiers, político que defende posições opostas à ideologia dos pensadores próximos de Putin, como Aleksandr Dugin – o “Rasputin de Putin”– e o “oligarca” Konstantin Malofeev.
No Colóquio, Smits teve uma imensa surpresa.
Deparou-se com a exposição de uma doutrina pró-russa e tradicionalista, mas prenhe, segundo ela, de “evidentes tons gnósticos, pagãos, franco-maçônicos, dissimulados por trás de uma fachada nacionalista e pró-europeia, leia-se cristã e pela vida, capaz de enganar muitas pessoas de boa vontade”.
No ponto de partida há um engano, observou.
A grande mídia e o establishment político dominante trabalham pela cultura da morte, pela ideologia de gênero, pela extinção das nacionalidades e pelo desfazimento das culturas dos países numa massa planetária.
Essa ofensiva preocupa as pessoas bem orientadas e foi abordada no Colóquio. Mas, estranhamente, o tema foi misturado com uma propaganda de Moscou que conduzia no sentido oposto do prometido.
Um exemplo revelador é o conceito de “mundo multipolar” de Aleksandr Dugin. Esse conceito esteve no centro do evento em Paris e foi apresentado como uma alternativa radical ao líder do Ocidente: os EUA.
Preletores do colóquio ‘O Ocidente contra a Europa’. |
Mas, o que é o Ocidente na visão do “Rasputin” do Kremlin? , perguntou Smits
Em momento algum se falou do Ocidente cristão que levou o Evangelho ao mundo inteiro.
No centro da multipolaridade duguiniana há uma polaridade única: a do cristianismo ortodoxo cismático de Moscou. É uma troca enganosa.
O Patriarcado de Moscou foi criado pelos czares como uma “Terceira Roma”, que desconhecia a Roma dos Papas (a primeira Roma) e Constantinopla (a segunda Roma).
Depois foi extinto, em função de cálculos de interesse e o capricho dos czares e a expansão do Império moscovita.
No século XX, ele foi restaurado pelo bolchevismo em troca do engajamento pelo socialismo e pelo comunismo.
A multipolaridade religioso-cristã duguiniana reduz o cristianismo ao monopólio do Patriarcado de Moscou.
Ele é erigido em única igreja representativa da “Grande Rússia”, a qual por sua vez é proclamada “potência soberana e autônoma” única, imperial e invasora. E o Patriarca é mero servidor desse projeto.
Em janeiro de 2015, explicou Dugin com termos leninistas: “Não haverá Grande Rússia sem grandes conflitos. Uma prosperidade pequeno-burguesa jamais nos conduzirá à grandeza. Espero uma Grande Rússia por meio de grandes abalos”.
Assim, a multipolaridade duguiniana resulta na hegemonia russa centrada com exclusividade no Kremlin e em seu submisso Patriarca de Moscou.
As críticas às intenções mundialistas de reprimir a natalidade se desfizeram na hora em que escritores pela vida – mas também por Putin – manifestaram grande hostilidade à expansão demográfica africana.
Eles culpam essa última pelo “aquecimento global”! Mas ao mesmo tempo afirmam que dito aquecimento é uma invenção globalista para montar uma ditadura à qual os agentes putinianos pretensamente se opõem!
Quem decifra tão ovante contradição?
Mas isso foi apenas o começo das descobertas de Jeanne Smits que não conseguia acreditar no que via e que entrava por seus ouvidos.
No Colóquio ‘Ocidente contra a Europa’, assistido por Jeanne Smits, o discurso contra o Ocidente ficou obcecado pela exaltação da herança “heleno-romana e cristã” da Europa, que seria mantida com exclusividade pelo Patriarcado de Moscou.
A jornalista ficou estranhada pela sistemática omissão da herança histórica e cultural católica, ou com a ausência de noções religiosas básicas, como os Dez Mandamentos.
Na abertura, o tesoureiro da Sofrade, Louis de Sivry, saudou a presença dos conselheiros das embaixadas russa e iraniana em Paris. O que tem a ver o Irã governado por fanáticos xiitas com a causa do cristianismo ou da “herança greco-romana?” – perguntou Jeanne Smits em seu site reinformation.tv..
Mas logo lembrou que o presidente da Sofrade possui a empresa Tzar Consulting que acompanha projetos comerciais em “zonas geográficas não convencionais”, especialmente no Irã.
A Rússia de Putin foi o leitmotiv.
Nicola Mirkovic, colaborador da agência Sputnik e da Russia Today – dois grupos da propaganda putinista –, propôs substituir a União Europeia por uma União que vá de Brest (no Atlântico) até Vladivostok (no Pacífico).
Em outros termos trocar Bruxelas por Moscou num esquema mais esmagador das identidades nacionais do que a atual UE.
O coronel Jacques Hogard denunciou a NATO como “organização obsoleta e perigosa” e “braço armado dos EUA”. E propôs uma aliança dos países europeus com a Rússia. Mais da mesma coisa trocando o polo de influência de Washington para Moscou.
Jeanne Smits custava a acreditar que assistia ali ao renascimento da antiga estratégia geopolítica da URSS.
Era como se os presentes trabalhassem para uma “nova Rússia” reconstituindo o antigo bloco soviético. Eles propunham restaurando velhas alianças com os aliados tradicionais da era soviética, como Cuba, China, Coreia do Norte acrescido do Irã e da Venezuela.
John Laughland, diretor de estudos do Instituto de Democracia e Cooperação, presidido por Natalia Narotchnitskaïa e teledirigido por Putin, defendeu que o comunismo sumiu na Rússia.
Mas, mirabile dictu, triunfa no Ocidente na sua versão marxista gramsciana.
Essas palavras soavam bem, mas eram enganosas e distorciam a realidade, observou Smits.
Primeiro: a Rússia não se libertou do comunismo como pode se ver pela continuidade dos kolkhozes coletivos, o cerceamento da propriedade privada e a ausência de liberdades, especialmente a religiosa.
Segundo: o gramcismo é uma variante estratégica para a vitória do comunismo, inclusive na Rússia,. O que Gramsci quer para Ocidente, desde 1917 está sendo aplicado na Rússia.
As reformas culturais que o marxista italiano pregou décadas depois, como a dissolução da família, o aborto, etc., são lei na Rússia.
Levan Vasadze, oligarca admirador do ocultista francês René Guénon, disparou que “o marxismo é uma forma de totalitarismo inventada pelo Ocidente” por capitalistas globalistas. O liberalismo seria outro totalitarismo.
Em resposta a esses totalitarismos ele ofereceu o conceito de “tradição” do ocultista René Guénon, também conhecido como Abd al-Wâhid Yahyâ, pois no fim da vida se tornou místico islâmico.
Jeanne Smits relembra que Guénon encarna o modelo do ocidental fascinado pelo Oriente, gnóstico, esotérico, maçom e apóstata. Acresce que o “maître-à-penser” de Putin, Aleksander Dugin, foi o primeiro tradutor da obra de Guénon para o russo.
Para Vasadze, a “civilização ocidental” só serve para os “estúrdios e os cínicos”. O sentido profundo dessa aparente confusão é que raízes da religiosidade russa remontam a “sabedorias” muito antigas e certamente não católicas, ouviu com espanto a jornalista que achava que ia encontrar defensores do cristianismo!
Vasadze anunciou outra era histórica cujo fundador será “aquele cujo nome não deve ser dito”, o “quarto cavaleiro do Apocalipse”, ou o cavaleiro da morte.
O que ele quis dizer?
Vasadze sublinhou que o liberalismo é que vai morrer. Para vir o quê na nova era?
“No centro da sociedade não há classe, nem raça, nem mesmo indivíduo”, explicou, antes de justificar o panteísmo.
Nessa nova era o homem feito à imagem e semelhança de Deus deverá ser substituído pelo homem-molécula sem individualidade.
Fabrice Sorlin, diretor da associação organizadora Sofrade, fez um apelo para se obedecer à Rússia, pois, entre outras razões, ela ajudou Bashar el-Assad a deter o avanço dos valores ocidentais.
O jovem ucraniano “ortodoxo” Olexandr Skoruskov ecoou o apelo parafraseando a ideia básica do “oligarca” Konstantin Malofeev, segundo a qual a fórmula ideal é a aliança dos sovietes com o Patriarcado de Moscou. Ele explicou que “sob os sovietes tínhamos uma moral, um senso da pessoa humana”.
Alexeï Komov, representante do Patriarcado de Moscou no Congresso Mundial das Famílias, defendeu que a revolução bolchevista de 1917 foi apenas uma “experiência” que nada tinha de russa (sic!). Como se Lenine não tivesse tido parte nela, nem toda uma geração de revolucionários russos que lhe imprimiram um caráter tipicamente russo.
Ora, foi a Revolução de 1917 que proclamou o amor livre, legalizou o divórcio e instalou o aborto sem limites. Mas Komov, auto-intitulado defensor da família, fingiu desconhecer tudo isso..
E hoje? Alegremente, Komov inventou que houve um “milagre” na Rússia em virtude do qual renascem os valores tradicionais da família e da tradição.
Quem fez o “milagre”? Komov, que trabalha para o oligarca Konstantin Malofeev, financiador da restauração das igrejas russas, deixou a resposta no ar. Obviamente não tinha, e esse “milagre” coletivo não existiu.
Ele fingiu ignorar que o número oficial de abortos hoje na Rússia é de 700 mil por ano, e com uma percentagem mais elevada que nos países mais liberais da Europa Ocidental.
Tampouco falou que o índice de divórcios na Rússia é um dos piores do mundo, acima de 50%.
Ou que os nascimentos fora do casamento desceram aos níveis deploráveis dos países dominados pelo “globalismo” (França, 57%).
Porém, Alexeï Komov apresentou-se despudoradamente como grande defensor da vida e não hesitou em explicar que “Stalin acabou mais favorável à família”, sem ligar para os cerca de cem milhões de mortes provocadas por esse ditador e as famílias assim destruídas.
Aleksandr Dugin, cujo site Katehon é também beneficiado pelos fundos do oligarca Konstantin Malofeev, é tido como o maître-à-penser de Vladimir Putin. No colóquio, suas ideias estavam na boca de todos. Mas – escreve Smits – em seu livro ‘O gnóstico’, Dugin confunde conceitos e posições para ludibriar deliberadamente os outros: “Nós os embaralhamos passando do direitismo ao esquerdismo e vice-versa. Seduzimos ao mesmo tempo a extrema-direita e a extrema-esquerda”.
Smits identifica nesse livro de Dugin um velho palavreado maçônico. Com palavras confusas supostamente de direita ele restaura o pensamento mofado da velha esquerda e forja um “Putin salvador da Cristandade”, que é ao mesmo tempo herdeiro de Stalin!
A jornalista teve mais uma surpresa no encerramento.
Yannick Jaffré, pensador nietzschiano e ex-militante do Partido Socialista Francês, voltou a apelar para a inspiração de uma ciência “que vem de muito longe”.
Ele invocou os clássicos pagãos, os antigos gregos, Maquiavel e Nietzsche. Sim, o próprio Nietzsche, que pregava o combate à Igreja quando ela não estava empesteada de progressismo.
Não foi por acaso – conclui Jeanne Smits – que a palavra final do Colóquio ficou com um pensador tido como “perfeito panteísta”.
No “cristianismo putinista”, a jornalista só encontrou engano e tapeação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário