por Flávio Morgenstern,
Miriam Leitão foi insultada por militantes do PT. Do mesmíssimo PT que Miriam Leitão tanto elogia. É a típica Síndrome de Estocolmo.
O filósofo e matemático alemão Gottlob Frege carrega em sua filosofia algo que explica à perfeição o ocorrido com a jornalista Miriam Leitão, da Globo News, em um vôo da Avianca, conforme seu relato no jornal O Globo. Trata-se da confusão costumeira entre sentido (Sinn) e referência (Bedeutung).
Certos discursos que inculcamos em nosso linguajar podem fazer um certo sentido interno ao que nós estamos dizendo. Por exemplo, se nos julgamos contra a exploração e a opressão (e quem não se julga?), nosso pensamento, para fazer sentido, precisa trabalhar no sentido de evitar ambas as coisas.
No entanto, fora do reino do mero discurso, e noves fora as contradições internas que podem fazer um discurso deixar de fazer sentido por si, quando o que dissemos precisa ter uma referência externa na realidade, será que conseguimos transubstanciá-los de fato naqueles partidos ou políticos que não exploram e não oprimem? Ou não sejam corruptos, ou defendam o mesmo que o povo defende?
Miriam Leitão, como boa parte do staff atual da Rede Globo, foi perseguida durante a ditadura. Suas idéias sobre feminismo, programas sociais, aborto, cotas, política fiscal, democracia ou qualquer tema polêmico à escolha do freguês têm chance de serem, 9 de cada 10, idênticas às do PT. Tal como vários jornalistas da Globo News, do jornal O Globo ou de qualquer parcela jornalística da Rede Globo, a visão de Miriam Leitão é progressista e “social”.
No entanto, o PT trata a Globo como um poço de reacionarismo, como se as novelas da Globo louvassem a Igreja Católica ou o protestantismo weberiano, como se a emissora estivesse empenhadíssima em um livre mercado laissez faire absoluto, como se a visão dos jornalistas da Globo fosse pró-Partido Republicano (e pró-Trump) e pró-Tories, como se a Globo odiasse o PT e estivesse desde O Rei do Gado martelando no Jornal Nacional e no imaginário coletivo das novelas e das celebridades que o MST é violento, que as drogas devem ser proibidas, que aborto é assassinato de crianças, que a sexualidade precisa conter freios, que a família é mais importante do que o Estado ou prazeres secundários.
Ou seja: até mesmo ignorando se o discurso interno do PT faz sentido (se seu modelo econômico é bom, se é honesto, se joga limpo, se tem alguma vantagem sobre outros partidos etc), há uma falha de referência, como oposto por Gottlob Frege: a Rede Globo que o PT descreve é a mesmíssima Rede Globo de 1965, como se ela não tivesse mudado uma vírgula de sua linha editorial daquela época até hoje.
O PT, com uma visão parada no tempo há meio século, acredita que Malhação é uma novela sobre estudo e disciplina, que o Videoshow é um programa sobre os valores morais das celebridades, que Fátima Bernardes fala sobre música erudita e educação escolástica, que Amor & Sexo é sobre castidade e fidelidade, que as novelas são sobre família, tradição e propriedade privada, que o BBB pariu Jair Bolsonaro.
O pior: o PT, ou qualquer professor de História clichê no país, acredita que foi o único a perceber que a Rede Globo, digamos, é ruim, e portanto, é direitista (afinal, na época em que nossas avós estavam com seus 20 e poucos anos, a Globo apoiou a ditadura). É uma dissonância da realidade que, antes mesmo de se analisar o sentido de seu discurso (se a esquerda é mesmo boa, se a direita é esse poço de tortura e abatimento de crianças etc), tem um referencial insanamente oposto à realidade.
Não é só Miriam Leitão: a Rede Globo inteira hoje incensa o PT, comprou o discurso “Fora Temer” com uma velocidade impressionante (vide a trapalhada de Lauro Jardim, que vendeu o áudio de Joesley Batista como uma “prova cabal” contra Temer, no que foi repetido roboticamente por todos os petistas do país, quando o revelador áudio não é tão cabal assim), enquanto chamou por meses a fio as manifestações contra Dilma e o PT de “protestos contra a corrupção”.
Miriam Leitão, diga-se, tem uma fundamental divergência com o PT: o desastre econômico. Não é, não quer ser, se ofenderia se fosse chamada de liberal ou de (horresco referens) conservadora. Não cansou de elogiar o PT, até mesmo quando o partido não merecia elogio algum (naquela velha litania de “o PT manteve nossa economia de 2% ao ano ‘nos eixos’, então merece aplausos”, que não convence senão quem se informa pela própria Globo). Seus valores, diga-se, estão incrivelmente mais próximos do PT do que de um DEM, PSC, NOVO ou qualquer partido com nítido viés anti-esquerda.
Mas, como o PT ainda tem referências da década de 60, como o PT ainda fala em ditadura (sic), ainda fala de privatização com nojinho (ZZzzzz), ainda está lutando contra o “neoliberalismo” (!) e ainda acha que não tem voz na mídia, que toda a elite está contra ele, naquele surrado discurso determinista de luta de classes que acha que ricos são ultra-capitalistas e pobres são revolucionários por força de classe, e não que isso seja uma ideologia panacona que se contradiz tão logo um mauricinho a pronuncie após aprendê-la para o vestibular num cursinho de R$ 2 mil de mensalidade.
Malgrado seu, tanto Miriam Leitão quanto boa parte do staff da Rede Globo, com as prováveis únicas exceções jornalísticas de William Waack e Alexandre Garcia, sofrem da Síndrome de Estocolmo: não é de hoje que passaram a defender a esquerda, não exatamente por economia (ao contrário do que brasileiro pensa) ou por consonância ao método da velha esquerda (sindicato, revolução armada etc), mas por progressismo, politicamente correto e globalismo (sexo conta muito mais do que política ou economia). Em troca, recebem o mais profundo desprezo e nojo da esquerda, que não pesquisa e nem reflete sobre algo nem mesmo que todo o seu esforço seja apertar o controle remoto e assistir passivamente por 5 minutos.
Quando delegados do PT atacam Miriam Leitão, estão se suicidando, comprando uma briga com uma emissora de quem só receberam afagos em tempos recentes. Quando a Rede Globo, e mesmo Miriam Leitão, defendem a esquerda com sua Síndrome de Estocolmo, estão também se suicidando: o povo sempre desconfiou da Globo da boca pra fora, mas votou em seus candidatos. Desta vez, seus programas estão perdendo em audiência para A Praça é Nossa ou novelas bíblicas da Record.
É uma falha de referência de ambos os lados, e isso porque ambos os lados também têm falha de sentido.
Em seu relato sobre o vôo da Avianca, Miriam Leitão confessa que “não é inimiga do partido” (quem pode não ser inimigo do PT, hoje?). Escreve: “Quando os governos do PT acertaram, fiz avaliações positivas”, confessando um wishful thinking em crer no ouro de tolos da produção artificial de riqueza petista. E ainda alivia: “Não acho que o PT é isso”. Quem é realmente contra o PT sabe bem que o PT não apenas é isso: hoje, é apenas isso.
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(*)Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs" (ed. Record). No Twitter: @flaviomorgen
Fonte: sensoincomum.org
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