por Paulo Rosembaum (*)
O dia 7 de abril foi o escolhido para homenagear as vítimas do holocausto. Como homenagear quem perdeu a vida para o nada? O argumento de revisionistas e ditadores beócios é que o massacre sistemático contra inocentes que começou com judeus e depois se estendeu às outras minorias, é um fiapo da história se comparado com outras tragédias resultantes da interação entre os homens.
É correto afirmar que outros genocídios já foram perpetrados em larga escala: milhões de índios, armênios, curdos, bósnios e ruandeses não sobreviveram para contar suas histórias. Mas aqueles que comparam guerras regionais e sazonais que acontecem em toda parte com massacres intensivos, movidos pelo ódio aos que destoam, não sabem do que falam. O extermínio seriado de crianças foi a grande originalidade nazista. Neste sentido, ele é obra única. Nada, absolutamente nada pode ser comparado ao infanticídio que produziu 1,5 milhão de crianças anuladas para sempre.
Foi o começo do começo e o fim do fim.
A datação do mundo deveria ser zerada a partir do yom hashoah (o dia das vítimas do holocausto) não porque uma tribo poderia ter sido extinta, nem pelos milhões de inocentes descolados de suas vidas, mas pela cassação da inocência, pelo abortamento completo e absoluto que, em nossa era, construiu a impossibilidade de sonhar. A paralisia que ensurdeceu o mundo, a inércia que nos fez e continua nos fazendo cúmplices. Pela humanidade que não conseguiu contornar o inevitável. É no abismo incessante que podemos enxergar o tamanho da terra que cobriu os corpos.
Mas não podemos mais só apontar para os carrascos uniformizados. Nem mesmo pleitear heroísmo póstumo para vítimas que jamais serão identificadas, sequer saberemos como existiram ou se existiram.
A cumplicidade silenciosa durará a eternidade. A civilização adernou e não há mais luz entre os assassinados pelo mal absoluto. A ausência dos mortos de fome, sede, frio, exaustão, selvageria ou abandono é quem acusa. Ainda que não haja equivalência moral entre um infanticídio sistemático e as explosões de violência dos conflitos e guerras, a tinta de ambos tem a mesma cor. É o carbono da indecência e da auto-predação. Chegamos enfim a era em que deverá ser reconhecida retrospectivamente como aquela que enfim assumiu a ideologia: inexistência do outro. O eu aglutinou todas as formas de existir e a conjugação nas várias pessoas não faz mais sentido. Tu e vós, além de ultrapassados, não merecem estar aqui. O nós virou desacreditada utopia ou só piada de salão.
Não foram só nazistas com seus milhões de fiéis e obedientes seguidores que pariram a sombra mas um mundo sem coragem que apresentou sua estampa frágil e manipulável. O nacional socialismo alemão demonstrou, definitivamente, o valor e o imperativo ético da desobediência civil como única saída, quando a civilização encontra-se sob risco.
Se sonhar é parte vital das nossas funções orgânicas e espirituais, quem tem o direito de colocá-la sob ameaça? De costurar nossas bocas com estopa? A inexistência do outro se tornou pressuposto, mais que isso exigência, mais que isso, o único dogma que restou. Mas ele só se tornou cabível e chancelado a partir dos eventos que tiveram lugar durante os anos que em que o holocausto foi executado.
Ninguém está se referindo a um processo que teve lugar em algum ponto distante e remoto na história. Faz só 75 anos e é prova que a violência ainda que adormecida, está ativa e à espreita. O lobo do homem ainda está vivo e se oculta nas brechas. Talvez seja injustiça com os lobos (raríssimos os relatos de ataques espontâneos de lobos contra o homem), ainda que viva na natureza de todos nós a fração bélica, que não hesita em predar.
Mas o que vai além de tudo, e, talvez mesmo o que mais impressiona é a capacidade humana de ir adiante sob o trágico. Devemos homenagear as vitimas enquanto reverenciamos o tino humano para prosseguir, andando sobre ruínas, sob ossos e vagando em campos devastados.
Homenagear vítimas de violência, em qualquer tempo e local, seria substituir a culpa coletiva por capacidade de renascimento.
(*)Paulo Rosenbaum é médico e escritor. É autor de “A Verdade Lançada” (Ed. Record)
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