por Silvia Perlov (*)
Um céu de um azul tão puro, o revoar dos pássaros e um leve soprar das pétalas amarelas. Um ambiente bucólico, que encobre um passado mais do que sombrio. É difícil pensar que esse cenário não faz parte da produção de um filme, mas sim, é um dos mais emblemáticos símbolos do Holocausto. Nos campos de Auschwitz-Birkenau, esse último conhecido, também, como Auschwitz II, mais de um milhão e cem mil pessoas morreram, fisicamente. Sim, porquê suas almas já estavam mortas antes de seus corpos chegarem lá.
Isso pôde ser mais do que constatado na viagem que fiz junto ao grupo de jornalistas da América Latina, convidados pelo Congresso Judaico Latino-Americano –CJL, com o apoio fundamental do Fundo Comunitário do Estado de São Paulo e da Fundação Safra, a mergulhar nesse passado tão recente, cuja ferida não pode e, tampouco deve ser fechada pela simples razão de que, atos ou situações como essa, devem servir de exemplo à toda humanidade para que não permitam repeti-las ou que ousem negá-las.
Os jornalistas trabalhavam incessantemente, buscando o melhor ângulo, saber mais detalhes, mas, sobretudo, procuravam entender o que e porquê tudo aconteceu. Para mim, particularmente, mais chocante que ver os campos, foi tentar compreender como o mundo deixou isso acontecer! Qual a razão de toda essa maldade? Conquistar terras? Demonstrar poder?
A máquina da morte que se instaurou, talvez tenha sido mais eficaz, que os pogroms, a inquisição, porque não era uma morte simples e rápida! Ela era precedida pela morte espiritual. Quando vi o gueto de Cracóvia, me ocorreu a pergunta, porque este muro é tão trabalhado? Nosso monitor me respondeu com uma pergunta: “O que ele te lembra, Silvia?”. Na hora, retruquei: “Um cemitério”. Não preciso me delongar…
Dias antes, outro choque, ao adentrar no cemitério de Varsóvia, localizado no final do gueto da cidade, e que é a última morada de grandes personalidades, como I.L Peretz, Lázaro Ludoviko, o que parece um nonsense, estar sepultado nesse espaço, alguém que pretendia criar uma língua universal falada e compreendida por todos, o Esperanto.
Há mais de 150 mil lápides inscritas nos mais diversos idiomas (polonês, alemão, ídish, russo), ele foi fundado por judeus ricos do subúrbio de Praga. E está cheio de histórias, como a de Czerniakow, responsável pelo Judenrat, e que se suicidou, mas está em meio a outros túmulos por ter se recusado a entregar uma enorme lista de seus compatriotas ou a do historiador Meir Balaban, procurado pelos nazistas para identificar quem eram de fatos os judeus do local.
De volta ao fato, percorria o local e observava um grupo de alunos poloneses acompanhados por sua professora relatando o que tudo significava, e de repente, fui chamada a atenção. Estava em meio a uma das muitas valas comuns, que pensava avistar adiante, quando olhei ao redor, me dei conta que, na verdade, estava em um enorme círculo, e abaixo dele, muitos dos que pereceram na miséria do gueto. Fui alertada: “Há mais de 35 mil pessoas enterradas, sem nomes, porque não dava tempo para cumprir os rituais pós-morte”.
Em Varsóvia, senti-me especialmente mal em mais três outros momentos, além desse. Ao chegar, nós, os brasileiros, fomos desbravar um pouco a cidade antes do cair da noite. No caminho, vejo no chão, inscrito: “Muralha do Gueto 1941-1943”. Penso comigo: “Na calçada, e as pessoas tranquilamente passam por cima da história?!”.
Segundo episódio: Vejo um teatro ídish, penso que bom estão revivendo nossa cultura, assim como uma sinagoga, tudo bem próximo ao então gueto. Sim, mas as peças são feitas por poloneses, e os que oram são outros judeus, afinal dos 450 mil judeus que se atolavam nos 75 quarteirões ocupados pelo gueto, muitos se não pereceram nele, tiveram um final, ao que se pode julgar, melhor? Uma morte mais rápida?! Entrei em um dos prédios… Procurei me colocar (isso invariavelmente), no lugar daquelas pessoas, repartindo um minúsculo espaço, derramada no meio-fio.
O terceiro episódio, e que me causa arrepios, a praça de deportação, onde ficavam horas, dias, semanas esperando seu destino final, encostado a ele, funcionava um hospital, em que um médico e uma enfermeira piedosa deram cianureto aos seus pacientes para evitar que lhes roubassem a alma, já que o corpo estava no limite. A praça possui um banco mais baixo, simbolizando o período de luto observado pelos judeus. Hoje, em frente a Auschwitz ou ao bairro judaico de Kazimiersz, ambos em Cracóvia, há um turismo alegre e lucrativo, porém, outro, macabro. Nesse último, encontramos em uma feirinha de artesanato, um senhor vendendo uma estrela com os contornos realçados por borracha, como se fossem originais, e dessem tempo de fazê-los
O museu de Oskar Schindler nos posiciona bem no tempo e espaço. Vida e morte se encontram em Cracóvia, se por um lado temos Auschwitz, Museu de Schindler, gueto; há Kazimiersz, que recria o tempo em que a comunidade gozava de certo prestígio, dado pelo rei Casimiro. Mas, há que se ressaltar que após ver tudo isso, tentar refletir acerca dessa experiência, ainda muito recente, ainda acredito que a essência do homem é boa. Há pessoas como o ‘Justo entre as Nações’ Tadeus Pankiewicz, um farmacêutico, cuja vida não ganhou as telas de Hollywood, mas que seu estabelecimento servia de passagem para medicamentos e outros gêneros a fim de garantir a vida dos que estavam no gueto, e que abrigava um funcionário que falsificava documentos de trabalho.
O que aconteceu nesse período? Por que tantas mortes? E, pior, porque tanto requinte nessa execução? Não sei…. Voltei com mais perguntas, que respostas. Mas, com uma certeza, essa é uma experiência obrigatória para se tornar uma pessoa melhor, para se alegrar com cada pôr-do-sol e alvorada, sorrir ao observar o bater de asas de uma borboleta, ou simplesmente, por sentir seus cabelos ao vento.
(*) Silvia Perlov é assessora de imprensa, jornalista e bacharel em Letras Orientais
Fonte:-Pletz.com
Fonte:-Pletz.com
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