sexta-feira, julho 07, 2017

Cotas na USP: Estudar em uma universidade de ponta não é seu “direito”


por Flávio Morgenstern (*).





Há uma noção a ser percebida em todo debate sobre cotas: o povo paga a Universidade em troca do conhecimento, e não do privilégio dos alunos.



A USP aprovou pela primeira vez a inclusão de cotas raciais em seu vestibular. A Fuvest, a Fundação para o Vestibular que cuida do processo seletivo de admissão na Universidade de maior prestígio no país, terá até 2021 a obrigação de incluir 50% dos calouros advindos da rede pública e, dentre estes, 37% devem ser pretos (sic), pardos ou indígenas. Brancos se tornam gradativamente proibidos de cursar a USP, não importando seu desempenho, mérito e esforço.

A decisão do Conselho Universitário, cuja sigla é na verdade CO e qualquer tentativa de explicação não ajuda muito, é um adiamento da proposta original, na qual a USP já deveria ter 50% de calouros egressos de escolas públicas já em 2018.


Os grupos de pressão por cotas na USP exigem cotas entupindo a faculdade de pichações, lambe-lambes e cartazes com variegados graus de higiene. Apenas pichações racistas, de autenticidade duvidosa, ganham destaque na mídia.

Já há cotas para o ENEM, tal como cotas para concursos públicos após a conclusão do curso. A USP era uma das últimas universidades paulistas a resistir ao sistema. Basicamente o ITA será a única grande Universidade a adotar o sistema puro de notas. A paulatina proibição de brancos nas Universidades atinge também Unicamp e Unifesp.

A dinâmica que vai proibindo brancos de cursar Universidades como a USP, ou qualquer universidade de ponta, através de cotas, embotada em frases de efeito como “A USP ficará preta” ou “Quantos professores negros você teve?”, possui em seu bojo uma inversão da própria idéia da Universidade.

Modelos de ações afirmativas, que sempre emulam a estrutura das cotas raciais, pretendem corrigir uma injustiça passada punindo indivíduos no presente que nada têm a ver com o passado. É como tentar corrigir a injustiça contra os escravos judeus punindo-se os egípcios modernos e proibindo-os de cursar uma faculdade. Boa parte destes egípcios, por sinal, era e é negra, enquanto vários judeus são loiros de olhos azuis. Ignora-se a mudança política, econômica, cultural (egípcios hoje são em sua maioria muçulmanos, que também escravizaram europeus por mais de um milênio) e mesmo étnica, olhando-se apenas para a casca: a cor de pele.


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A ideia de se “empretar” a USP parece tentar corrigir os problemas da economia escravocrata no Brasil colônia, à força de cotas que impeçam brancos de cursar a Universidade. Historicamente, já há um equívoco enorme: mão de obra italiana, e mesmo japonesa e alemã, veio para o centro-sul do país em meios do século XIX para substituir os escravos africanos, que já ficavam caros.

Gilberto Freyre, antropólogo conservador, em Casa Grande & Senzala, demonstra como os gastos com escravos chegavam a consumir até 80% do orçamento das fazendas. A solução também veio de além-mar: importar mão-de-obra barata de países consumidos pela fome e tirania do Primeiro Mundo. Ao invés de arcar com os custos de vida do escravo, da senzala à alimentação, italianos, alemães, japoneses e afins eram pagos com salário de fome, e tinham de pagar ao proprietário de terras um endividamento de gerações para sobreviver à penúria. Não é preciso conhecer muito além da história de qualquer família italiana do centro-sul do país para descobrir tal obviedade.

Até mesmo historiadores com o ranço marxista costumam atacar a monarquia e realeza brasileira por seu papel na abolição da escravatura, considerando que apenas seguiam o hegeliano “espírito da História”: a escravidão nem era mais propriamente praticada como dantes quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.

Alguém cogita cotas para descendentes de italianos, com sobrenomes como Cavichioli e Gnacarrini (ou Salvatti, ou Palocci)? Ou alemães, variando do Ruschel e Finkler a Hoffmann? Que tal cotas para japoneses?




Para adicionar insulto à injúria, a idéia atual é que uma Universidade de ponta, como a USP, existe para que o estudante tenha bom emprego e dinheiro. Que o único objetivo da Universidade é o bem-estar do aluno, como se fosse um prêmio a ele a conquista da vaga. No caso de uma Universidade pública, é como se toda a sociedade resolvesse premiar alguns indivíduos com uma vida de rei, à qual alguns estão excluídos de jure para desfrutar de tais faustuosas glutonarias.

A verdade é exatamente o oposto. Se egressos da USP costumam ter dinheiro, é pelo peso intelectual de seu trabalho e estudo. A sociedade paga a USP não em troca de premiar seus alunos com adulações, mas para que a sociedade tenha em troca pesquisas médicas, um sistema jurídico avançado, intelectuais de respeito capazes de pensar a sociedade, a natureza, mesmo a estrutura da realidade.

Se tais intelectuais, por isso, conseguem receber mais do que a média, tal fato é apenas uma conseqüência, uma decorrência do mérito. Não o seu objetivo, como quer crer a política de ações afirmativas das cotas. A sociedade paga por Universidades de ponta (ou supostas) como a USP não para ver o João ou a Maria com o carro do ano, mas para ter bons médicos nos hospitais, engenheiros que façam prédios, pontes e aviões que não caiam e para que diplomatas não sejam tapeados ao negociar as riquezas do país com a Rússia.

A premissa oculta de qualquer defensor de cotas é uma experimentação contra tal realidade: para o cotista, só interessa o dinheiro advindo de um diploma da USP, ou de qualquer Universidade. Interessa o seu “direito” de dizer que é da USP, e não o quanto estuda para que a USP seja uma Universidade considerada de ponta, justamente por selecionar os também supostos melhores alunos.




Interessa a quem defende cotas o atalho entre o não-estudo e a grana. Não descobrir um novo remédio ou inventar um combustível barato. O que a política de cotas quer é o “direito” de alguém dizer que faz parte da USP e merece a adulação advinda, não o que pode dar ao mundo. Como se o povo pagasse pela USP tão somente para que ele, o João, ou a Maria, possam dizer que são uspianos, a forceps. Ou mais exatamente, por cota.

As ideologias do reducionismo contaminam justamente Universidades de ponta como a USP, observando apenas a casca, ou a cor de pele. Justamente elas que destróem a educação brasileira, jogando nossos índices acadêmicos para o subsolo do planeta.

Exatamente tais ideologias de acadêmicos perderam o contato com a realidade, enfastiados em suas torres de marfim separadas da vida concreta por um Muro de Berlim ao redor da Cidade Universitária. Elas que tentam corrigir os problemas econômicos, políticos e sociais com um teatrinho: dar cotas a uma parcela para que se sintam uspianos, e abracadabra, os problemas estruturais do país desaparecem no reino da igualdade.

Não há um único professor que não admita que diminuiu o nível das aulas para manter as notas (e não o desempenho, mas novamente o teatro para encobri-lo). É assim que ter um diploma da USP vale cada vez menos, sobretudo nos cursos mais ideológicos, como os da FFLCH – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

As cotas, no materialismo mais rasteiro que não vê valor, e sim preço, crêem que resolverão os problemas do país transformando a USP em “preta”. O racismo não diminuirá na manobra, nem a USP será mais bem vista. Não é com encenações que algum problema intelectual e de estudo será resolvido na sociedade.




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(*)Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs" (ed. Record). No Twitter: @flaviomorgen







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