por Flávio Morgenstern(*).
Com o destaque dado a João Doria, o termo "socialismo fabiano" começou a ser usado nas redes sociais. Mas o que é o fabianismo na vida real?
Um novo termo tem sido repetido ad nauseam nas discussões políticas na internet: socialismo fabiano. A incidência do vocábulo cresceu na medida em que o prefeito de São Paulo, João Doria, ganhou notoriedade entre uma parcela da direita por seus ataques ao PT. Outra facção, por ser o prefeito um filiado ao PSDB, alavancou o uso da expressão considerando que Doria é, na verdade, um “socialista fabiano”.
Poder-se-ia perguntar aos usuários do bordão uma série de questões: o que é o socialismo fabiano? Quem são os grandes socialistas fabianos? Em que país surgiu? Rússia? França? Alemanha? Onde ele já foi aplicado? Quais as instituições que o promovem? Quais são seus princípios? Os principais livros? Qual a diferença para outras formas de socialismo? Como é a economia fabiana? À base do Gulag, como na União Soviética? E a liberdade de imprensa? Há expurgos, paredón, genocídio?
O estudioso que questionar a maioria dos useiros do termo não encontrará respostas. O fenômeno é idêntico ao que a esquerda fez com o termo técnico “fascista”, uma realidade histórica brutal e perigosíssima – mas, usado tão somente como metáfora, e não descrição, está sempre comparando o que não é socialismo fabiano com o apelativo mote, justamente para tentar ofender quem teria horror a ser associado a alguma forma de socialismo. Mesmo a uma versão amorfa e indefinida.
O vocábulo fica assim oco de significado. Como define o antropólogo Claude Lévi-Strauss, aprofundando a terminologia lingüística, a palavra se torna um signo flutuante: pode significar qualquer coisa, só dependendo da vontade momentânea do falante. É algo comum ao pensamento mágico: ao invés de olhar para a realidade e, para expressá-la, tentar extrair dela um conceito, com palavras como “maçã”, “tristeza” ou “crise internacional de hedge funds“, o sujeito quer criar a realidade através de palavras-mágicas, como um pequeno Deus do Gênese.
Entre uma direita que poucos livros lê, mas dedicadíssima a um verdadeiro estudo de comentários de Facebook, a organização do mundo depende de seus ânimos, emoções, impressionabilidades e vontades urgentes, e não da fria observação, análise, estudo e estratégia. Em poucos minutos de mimetização de ídolos, o sujeito estará igualando a economia escandinava que produziu empresas como Nokia e Ericsson ao Camboja de Pol-Pot, simplesmente por tratá-los pelo mesmo termo. É uma situação comparável a quem tenta analisar as diferenças entre Beethoven e Mozart, conversando com alguém que só conhece bicordes e Luan Santana.
O fenômeno de lingüística, ideologia e mentalidade segue a Lei de Rothbard, a despeito de não ser um debate acadêmico: a parcela menos lida e mais emocionalmente sensível da direita tende a se especializar justamente naquilo que menos sabe.
Quanto mais o termo é usado, repetido e macaqueado ao ponto de não fazer mais sentido nenhum, menos o usuário sabe o que está fazendo. É difícil crer que, sem uma definição socrática, o indivíduo consiga identificar um socialista fabiano se o vir na rua. Todavia, é exatamente pelo que está chamando tudo aquilo que não é o socialismo fabiano, podendo até mesmo se tornar presa fácil de um.
Afinal, o que, na vida real, fora da caixa de comentários do Facebook, é o socialismo fabiano? Como uma realidade concreta, histórica, atual, presente e nem de longe pequena ou pouco influente, é importante conhecer o conceito, até mesmo para saber combatê-lo.
A sociedade fabiana
Não são precisos muitos desvãos secretos em linguagem hermética: em pouco tempo no Google, sobretudo em inglês, é possível aprender muito da conceitualização básica do fabianismo.
Não é possível falar em socialismo fabiano sem falar da Fabian Society. Longe de uma corporação secreta, a “Sociedade Fabiana”, formada em Londres em 1884, tem site (fabians.org.uk), conta no Twitter (@thefabians) e página no Facebook. Já na primeira página do Google encontram-se grandes monumentos das letras britânicas, como The Guardian e a Encyclopædia Britannica, explicando o que é a Fabian Society.
Há duas realizações de ordem gigantesca que os fabianos legaram à esquerda: a fundação do Partido Trabalhista (Labour Party) britânico e de uma das maiores universidade voltadas à economia e às ciências sociais do planeta, a London School of Economics (LSE), que tanto fez com que a economia ocidental visse com bons olhos as idéias socialistas. Os informes, papers, estudos e artigos, ou mesmo o podcast da London School of Economics, dão um panorama atual de quais as visões, objetivos e práticas da Sociedade Fabiana hoje.
Tal como boa parte dos hábitos insulares ingleses (empirismo ao invés de racionalismo, dirigir pela esquerda e aversão ao sistema métrico), o socialismo fabiano é um fenômeno tipicamente britânico. Para identificar um socialista fabiano, um dos passos mais seguros é verificar sua familiaridade ao ideário da London School of Economics e à ala fabiana ortodoxa do Partido Trabalhista inglês.
Quem fundou a sociedade fabiana foi o casal de barões Sidney e Beatrice Webb, e não uma pessoa chamada “Fabian”. O socialismo fabiano deriva seu nome do general romano Quintus Fabius, que se destacou na Segunda Guerra Púnica. A chamada “estratégia fabiana” era algo novo para a época: uma tática de guerrilha que busca, lentamente, atacar os suprimentos das tropas inimigas, mesmo que muito mais numerosas. O inimigo definha em força gradual e lentamente. O socialismo fabiano utiliza uma tática bastante parecida.
Quatro nomes deixaram o ideário do socialismo fabiano famoso, embora raramente sendo referidos como “socialistas fabianos” ou “fabianistas” – o mero termo “socialista”, deixando que o contexto da Inglaterra fizesse o serviço de localização, bastava. Os Prêmios Nobel de Literatura George Bernard Shaw (1925) e Bertrand Russell (1950), além da revolucionária Virginia Woolf, foram os grandes mentores “não-econômicos” do socialismo fabiano. Fabianos que apanhavam muito em debates do grande gênio católico G. K. Chesterton.
Curiosamente, boa parte da visão de mundo do fabianismo também é influenciadora e também influenciada por outro romancista: H. G. Wells, que, em obras como O Homem Invisível, A Ilha do Dr. Moreau, A Máquina do Tempo e Guerra dos Mundos, descreveu utopias onde a tecnologia substituiria as tradições civilizacionais e a sociedade seria reformada paulatinamente.
Dois conceitos-chave são entrevistos aí: o socialismo fabiano acredita em evolução, e não em revolução. Era um dos grandes temas de H. G. Wells. Além disso, seu foco não-revolucionário é a reforma da sociedade, não seu redesenho pós-revolucionário. Uma das principais características do fabianismo é derivada não de Hegel ou de Karl Marx, mas de Charles Darwin: a sociedade “evolui” através da ciência e da razão, e cientistas deveriam reformar a sociedade, que não poderia resistir ao “progresso”, feito via democrática. Além dos positivistas (como, por exemplo, o Exército brasileiro), socialistas fabianos são os grandes tecnocratas.
O que fazer com os pobres?
O primeiro manifesto socialista fabiano é o documento Why are the many poor?, que chega a uma conclusão não muito diferente da satírica solução para a pobreza proposta por Jonathan Swift em A modest proposal, de 1729: a esterilização em massa dos pobres como meio de controle populacional. Uma espécie de malthusianismo com anabolizantes. Se a proposta parece chocante colocada sem meias palavras, os desdobramentos atuais da esquerda para a questão dos pobres passou da esterilização para o aborto em massa, sobretudo de negros, em modelos como o da Planned Parenthood.
O fabianismo primitivo mostra-se vencedor nos temas da esquerda moderna, pós-queda do Muro de Berlim: nada de economia, e sim sexo.
Um das primeiras grandes influências intelectuais para o fabianismo foi o psicólogo progressista e reformista social Havelock Ellis, que legou a todo o socialismo fabiano a terceira idéia após Malthus e Darwin: a eugenia, a teoria de que os bem nascidos devem prosperar, e aqueles sem serventia para uma sociedade cientificamente planejada devem ser dela extraídos. Havelock Ellis foi presidente da Eugenics Society.
Se a eugenia passiva de Francis Galton visava a manutenção de caracteres raciais, a eugenia ativa, como feita por outros socialistas, os nazistas, partia para o extermínio aberto de elementos indesejados pelos agentes do Estado. Hoje, no mundo do aborto, onde mais crianças são exterminadas do que em qualquer momento da história (mesmo no culto a Moloch), vivemos numa acelerada mudança da eugenia passiva para a eugenia ativa.
Além da eugenia, o tema da vida de Havelock Ellis marcou o caminho dos fabianos: a homossexualidade, e até a psicologia transgênero. Suas teorias sobre auto-erotismo e narcisismo foram posteriormente adaptadas pela psicanálise de Sigmund Freud. A Fabian Society foi uma desinência de um grupo com o desabrido nome de The Fellowship of the New Life.
Rapidamente, o “progresso científico” propagou as pílulas anticoncepcionais, o aborto, a eutanásia e boa parte daquela parcela do ideário de esquerda que chamamos de ‘progressista”. A Inglaterra era o centro científico do mundo da época.
Sidney e Beatrice Webb podem ser considerados os fundadores do que se chama de Welfare State junto a Lloyd George e William Beveridge. São suas as propostas do salário mínimo em 1906, do National Health Care em 1911, da mudança da herança para o mais velho em 1917.
Socialismo democrático
Incrivelmente, o primeiro brasão de armas da Fabian Society era um lobo em pele de cordeiro (!!), para demonstrar os métodos preferenciais da Sociedade. Logo a idéia foi abandonada, por suas óbvias implicações negativas, e substituída por uma tartaruga, representando a preferência por uma mudança lenta, gradual e imperceptível para o socialismo.
Após visitarem a Ucrânia no auge da fome do Holodomor, Sidney e Beatrice Webb escreveram um livro de dois volumes chamado Soviet Communism: A New Civilization?, em que juram que não havia fome: tudo era “propaganda de anti-comunistas”. Stalin, obviamente, não era ditador nenhum, imagine. O socialismo fabiano de verdade, tratado como um “socialismo light” no Facebook, sabia assustar o PSOL quando queria.
H. G. Wells rompeu com a Fabian Society, escrevendo ainda quando era membro o panfleto The Faults of the Fabian. A sociedade foi parodiada em seu romance The New Machiavelli.
Contudo, economicamente, o socialismo fabiano foi se distanciando do socialismo “clássico” da linha marxista e tentou implantar sua “ciência”. Com a típica aversão inglesa ao controle e à planificação, assimilaram o liberalismo econômico, criando essa estrovenga moderna que é o liberalismo gerenciado, no qual o sistema de precificação é permitido, o mercado tem alguma liberdade, mas há pesadas regulações e regras que permitem ao Estado fazer uma supervisão logística de todo o processo.
Como explicamos aqui e aqui, foi criado o “socialismo democrático”, termo que confunde 11 em cada 10 falantes: trata-se da estratégia em que taxando empresas, criando-se direitos trabalhistas e regulamentações econômicas, logo o Estado controlaria mais de 51% da economia, e bastaria então que o Estado comprasse empresas sufocadas pela carga de impostos. É o processo de estatização – ou “nacionalização” – de companhias através do que chamam de setores estratégicos. O socialismo chegaria por evolução, e não revolução. Foram seus articuladores Leonard Woolf, R. H. Tawney e G. D. H. Cole.
Neste momento pré-globalização, socialismo fabiano e globalismo ainda soam quase como opostos: o primeiro nacionaliza, adorando grandes elefantes brancos, enquanto o segundo preconiza o exato oposto. O socialismo fabiano é Petrobras, o globalismo é Goldman Sachs. O socialismo fabiano é reserva de mercado para computadores nacionais, o globalismo é Microsoft e Facebook. Demoraria mais de meio século para alguma articulação entre duas entidades indiscerníveis, muitas vezes de contornos vaporosos – ao contrário da Fabian Society, praticamente nenhum globalista nunca se auto-declarou “globalista” ou escreveu algum “Manifesto Globalista”.
Um governo fabiano
A influência do fabianismo foi gritante no governo de Clement Attlee, primeiro-ministro que sucedeu Winston Churchill pós-Segunda Guerra. Attlee não é muito conhecido fora do Reino Unido, embora seu governo seja paradigma de desastre dentro da Inglaterra. Foi Clement Attlee quem implementou o Welfare State e as propostas do socialismo fabiano, tendo John Maynard Keynes como seu mentor.
Além do National Health Care, o principal destaque ficou para a nacionalização das minas de carvão e das ferrovias – exatamente os setores estratégicos pensados na nacionalização da Sociedade Fabiana, e exatamente os elefantes brancos que seriam desmantelados 30 anos depois, por Margaret Thatcher.
Outro destaque de seu governo foi a descolonização, tema tão caro ao ensino de História no Brasil.
Clement Attlee é lembrado pelos ingleses de uma forma análoga a Lula: uma militância esquerdista o ama, mas não admite em público, enquanto ele é lembrado pelo povo como sinônimo de desastre: seus gastos aumentaram o poder dos sindicatos e emperraram a economia, torrefazendo dinheiro do pagador de impostos com empregos que só serviam à ideologia. Winston Churchill voltaria ao cargo após seu governo, iniciando uma hegemonia conservadora de 4 mandatos seguidos. E isto em uma época em que os Conservadores estavam em crise.
Anthony Crosland, então, edita The New Fabian Essays em 1952, renovando a esquerda, que desde aquela época sofria seriamente com o anacronismo. Num tempo em que governos “socialistas democráticos” tomavam a Europa inteira, os fabianos sofriam em casa: mesmo Harold Wilson, duas vezes primeiro ministro, era um esquerdista que não comungava do credo socialista fabiano, tendo de rotineiramente angariar apoio no complexo sistema parlamentarista inglês junto aos Conservadores.
A Fabian Society voltou a ser a grande influência do Partido Trabalhista apenas na década de 90, e agora turbinada. Operou em dois fronts: modificar a estratégia eleitoral, a um só tempo em que lutava contra o aristocrata parlamentarismo britânico em busca de uma democracia mais direta, modelo “um homem, um voto”.
O resultado veio a galope: Tony Blair, o mais fabiano dos socialistas fabianos, se elege com mais de 200 parlamentares fabianos – quase todo o seu gabinete, incluindo nomes importantes como o futuro primeiro ministro Gordon Brown.
No mesmo ano, outro político fortemente influenciado – e influenciador – para os fabianos foi eleito na França: o primeiro ministro Lionel Jospin, que em 2005 escreveria uma auto-biografia confessando que descobriu no gabinete de Mitterrand que nem fazia idéia do que diziam os informes econômicos. Ambos tinham alta popularidade e ambos eram conciliadores, o que permitia que a agenda fabiana fosse implementada, ao mesmo tempo em que os fabianos mais radicais pediam pelas reformas mais antigas, como a de impostos.
O mundo, o socialismo, a esquerda e o que pegava bem, além da própria estratégia, haviam mudado. A Sociedade Fabiana deveria fazer o mesmo, como vieram a fazer os políticos “sociais-democratas” ao redor do mundo que, assumindo na década de 90, tentaram parecer pró-mercado e talvez até mesmo “privatizadores” em setores falidos. Era uma época em que a nova esquerda admitia a globalização, enquanto a velha esquerda regurgitava estatização, nacionalismo e socialismo. Foi a década de Bill Clinton. Foi a época de Tony Blair. Foi a época de Fernando Henrique Cardoso.
O PSDB é um partido “socialista fabiano”?
Nascido de uma espécie de modernização da esquerda do velho MDB, e com diversas tendências internas, o partido dos tucanos (Fernando Henrique, Serra, Nunes e boa parte de um partido de descendente de italianos eram narigudos) nasceu justamente na época da modernização da esquerda, que “os novos fabianos” da década de 90 trouxeram ao mundo.
Pode-se entender a diferença primordial entre PSDB e PT, que marcou a dicotomia política brasileira de 1993 para frente, justamente entendendo que o PT bradava por um socialismo não-global (“Fora ALCA! Fora FHC e o FMI!”), enquanto o PSDB já tinha abandonado o termo “socialismo” (como a maior parte dos fabianos modernos), preferindo ser um “reformista social”, ou um “social-democrata” ou apenas um partido que luta pela “justiça social”. O PT pensava em nacionalização (estatização) e greve, o tucanato já abraçava o globalismo, o capitalismo dirigido, os, digamos, “gestores” e “quadros técnicos” da tecnocracia que até hoje arrotam platitudes em economês sobre “crescimento” em nossos jornais.
No lastro da modernização da esquerda com a queda do Muro de Berlim, foi inciada a era da chamada “terceira via”, posteriormente chamada de “neoliberalismo” (vinculado retroativamente a políticos conservadores como Reagan e Thatcher e, por isso, levando a inculta esquerda brasileira a achar que o “neoliberalismo” é de… direita), uma espécie de socialismo por meio do reformismo e com aparência de liberalismo, tendendo à abertura global. O movimento terceiro-mundista, o sistema-mundo de Wallerstein, a CEPAL e tantos outros modismos beberam direta ou indiretamente da fonte da Sociedade Fabiana, que conta ou contou com a colaboração de Tony Blair e Bill Clinton, além de pensadores como Anthony Giddens. Poucas coisas são mais fabianas no mundo do que a Constituição de 1988.
Óbvio que para o brasileiro médio, acostumado ao linguajar da grande e velha mídia e dos professores de história, soa estranho chamar tucanos de “socialistas”, como se eles pregassem Gulag, paredón, economia racionada e ditadura do proletariado. Por isso, é necessário esclarecer que trata-se do socialismo ocidental pós-Segunda Guerra, no qual a Sociedade Fabiana foi, por incontáveis vezes, inimiga do velho socialismo.
José Serra, por exemplo, homem altamente influenciado por John Maynard Keynes, Joseph Schumpeter e sobretudo Albert Hirschman, tem como pressupostos para sua economia política a gestão forte nas áreas que a Fabian Society considerava estratégicas – como a saúde – e algum princípio de mercado com regulação em áreas menos estratégicas. Alguns usam nomes como “sociedade de mercado democrático”, ou variações com os termos, para o gigante elefante branco que, paulatinamente, através dos ganhos econômicos perante governos mais esquerdistas e estatizantes anteriores, foram angariados.
Algumas das lideranças mais ligadas aos intelectuais do PSDB, portanto, são o fino cerne do socialismo fabiano. Mas e quanto a pessoas que, perguntadas sobre Hayek, acharão que estamos falando da Selma? O Aécio Neves saberia diferenciar Thomas Piketty de Francis Fukuyama se os visse na frente?
João Doria no partido dos socialistas fabianos
O PT pode ser definido como o único partido de fato do país, na acepção que o termo tem, seja em Robert Michels (que via no fascismo um socialismo melhorado, por ser “mais democrático”) ou em Antonio Gramsci, seja em Carl Schmitt ou em Bertrand de Jouvenel: uma agremiação que busca o poder acima dos interesses particulares de seus indivíduos, com uma ideologia clara, um plano de poder e uma duradoura unidade de ação maior até do que a duração de vidas individuais.
Tendo ficado de fora da modernização da esquerda pós-esfacelamento da União Soviética (já naquela época ninguém mais agüentava ouvir falar em socialismo, lição que o PT só foi aprender com Duda Mendonça), o PT hoje tenta se modernizar às pressas, trôpego, e tendo como inimigo justamente um partido de esquerda modernizada – tratado pelo pensamento binário brasileiro como “direita”.
Mesmo sendo um partido de sindicalistas (Lula, Berzoini, Gushiken), guerrilheiros (Dirceu, Genoino), intelectuais falantes (Fernando Haddad, Marta Suplicy, Eduardo Suplicy) e falhas no espaço-tempo (Dilma Rousseff), é possível ver a cola que os une e entender perfeitamente o que é o partido sem precisar descer a seus interesses individuais.
Nenhum outro partido brasileiro possui tal estrutura, nem mesmo o PSDB. Há membros que apenas rezam tanto pela cartilha do “Estado gestor” (a própria cartilha socialista fabiana), como FHC e Serra. Ao mesmo tempo, há uma gelatina ideológica como Geraldo Alckmin, que a um só momento acena para o Opus Dei e para Gabriel Chalita, discípulo de Paulo Freire (enquanto é alvo do deboche e do desprezo de FHC nos bastidores). Estes andam lado a lado com esquerdistas da velha guarda (inclusive pré-globalistas, como Aloyzio Nunes), tecnocratas narcistas sem nenhum projeto além de si próprios (Aécio Neves, Tasso Jereissati), alguns poucos herdeiros da Democracia Cristã de Franco Montoro, e mesmo um ou outro legislador que esteja no partido, estando muito mais à direita do que o partido permite (Cássio Cunha Lima, Yeda Crucius e até o conservador Paulo Eduardo Martins).
Não é exatamente inteligente considerar alguém “socialista fabiano” apenas por ser do PSDB, embora seja o partido par excellence do fabianismo no Brasil. FHC e Serra certamente foram influenciados por esse ideário. Alckmin e Aécio, que não se parecem em nada, têm incontáveis defeitos, mas têm menos influência do fabianismo do que de qualquer projetinho de lei homenageando deputado em troca de apoio para uma emenda.
Ao invés de ver unidade e princípios superiores entre o alto tucanato de FHC, Aécio, Serra e Alckmin, o que se vê são figuras que se odeiam puxando o tapete um do outro por interesses pessoais. É um partido formal, mas não aquilo que a ciência política considera um partido, um meio de poder: o PSDB é uma briga interna entre gente em quem o povo só vota por detestar mais o PT, e que não avança projeto nenhum.
João Doria galgou o poder na cidade de São Paulo justamente indo contra todo o partido, contando apenas com o apoio de Geraldo Alckmin, que estava tentando ganhar força para fazer frente justamente à ala mais fabiana do partido, que o despreza. É simplesmente impossível encontrar na mídia uma declaração de um tucano favorável ao único político com alta aprovação no Executivo do próprio partido. Ficou famosa, nas primárias da cidade, a cena em que partidários pela indicação de João Doria e de Andrea Matarazzo se esbofetearam nas ruas, com direito a calças arriadas e, bem, isto. Andrea Matarazzo acabaria saindo do partido para virar vice na chapa de Marta Suplicy, agora no PMDB.
João Doria enriqueceu com contratos com o governo, que até hoje não foram investigados. Ficou famoso só o caso da sua revista “Caviar Lifestyle” (sic), que obviamente ninguém lê, mas recebia verbas do governo Alckmin. Apenas a pontinha de um iceberg incalculavelmente maior. Mas antes de Alckmin, seu grupo político é o da família Covas, onde cresceu no PSDB. São coisas pelas quais o atual prefeito deve responder.
Contudo, Doria ganhou a primeira eleição paulistana no primeiro turno por seu estilo midiático e seus ataques ao petismo, formalmente indigitando Lula, não cedendo a repórteres que o pediam moderação (um anti-tucanismo explícito) e, sobretudo, pelo desmantelamento fugaz do descalabro feito na cidade pelo petista Fernando Haddad, que chegou a ter popularidade de um dígito.
Como parte dos tecnocratas com bom sobrenome do partido, Doria tem uma ideologia dificilmente discernível no horizonte. Não parece ser alguém que deve saber o que raios é “socialismo fabiano”, e deve acreditar que o fabianismo, por ser “socialismo”, significa piquete e revolução, e não um meio para um socialismo que, certamente, algum dia chegará, com a obstinação de uma tartaruga.
Nesta toada, ao invés de ler Keynes, Doria assumidamente só lê jornais, sendo o homem de mídias modernas (Bom Dia Brasil e Youtube) na política brasileira. Sendo publicitário, suas preocupações parecem muito mais voltadas às aparências do que às suas substâncias das coisas. Sendo consumidor da mídia, o seu sistema de valores é oriundo da mídia: valores do globalismo – nada de socialismo fabiano, fenômeno muito mais localizado, daqueles influenciados diretamente pelo turning point da velha esquerda rumo à modernização em idos dos anos 90.
Essa mídia acha que Donald Trump é pior do que Kim Jong-un e Adolf Hitler somados, e que armas causam crimes, enquanto criminosos são sempre “suspeitos”. Essa mídia acredita que aquecimento global é “consenso científico” e que a solução são acordos multilaterais que deixem que a ONU governe no lugar de nossas soberanias nacionais.
A mídia, enfim, é o que João Doria pensa, descontando-se os eufemismos para Lula.
Globalismo x O socialismo fabiano hoje
Para os leitores de Facebook, que não lêem livros, há um microcosmo conhecido que conheceu a verdade revelada, raramente ultrapassando um punhado de pessoas, e um mar aberto de erro inimigo que é sempre homogêneo. Assim, basta pensar que todos os adversários são idênticos, sem precisar pensar em nada além: globalismo, socialismo fabiano, social-democracia, socialismo, nazismo e uva passa no arroz são a mesma coisa, usando-se os termos como intercambiáveis.
A coisa se torna ainda mais grave quando salpicada de expressões que caem no uso comum, que o usuário não faz idéia do que significa, mesmo a 1 segundo de distância do Google. É comum ver usuários de Facebook afirmando que João Doria é claramente um socialista fabiano pois sua eleição é a estratégia das tesouras… uma estratégia criada por Lenin justamente para colocar a extrema esquerda no poder, e não um socialismo lento como o fabiano (as tesouras foram usadas pelo PSTU em 2013, por exemplo).
O globalismo hoje já presume um Estado cada vez menor (conquistando muitos libertários, que acreditam que um acordo multinacional de “livre comércio” significa “livre mercado sem fronteiras”), além de se focar em pautas contrárias à família: feminismo, propaganda gayzista, legalização das drogas, educação controlada pela ONU, legalização do aborto e financiamento via grandes fundos bancários transnacionais, com grande destaque para o Goldman Sachs.
O socialismo fabiano, apesar de se conjugar com o globalismo em diversos aspectos, está preocupado muito mais com a questão de leis de renda e herança, ainda buscando criar um grande Estado nacional que possa dirigir a sociedade.
Seu maior exemplo atual (que, não por mera coincidência, é egresso da London School of Economics), é o economista Thomas Piketty, cujo livro O Capital no Século XXI advoga que os insumos advindos da renda (por exemplo, uma casa colocada para alugar) são incrivelmente maiores do que os do trabalho (por exemplo, de um carpinteiro que alugue uma casa para morar). Assim, a desigualdade mundial aumentará brutalmente, e a única solução cabível é que governos criem impostos de renda fortíssimos (inclusive em âmbito global), para tentar equalizá-la com os ganhos do trabalho.
Na Inglaterra da Fabian Society, a questão é tão pública que o incêndio na Torre Grenfell, que deixou 79 mortos, foi discutido justamente à luz das incansáveis reformas por “bairros verdes” (do Partido Verde) e de bairros criados para trabalhadores pelo Partido Trabalhista fabiano, contra a “especulação imobiliária” (já notou como a expressão é usada quase apenas neste mercado?) dos Conservadores.
Um dos novos turning points dos socialistas fabianos veio em 2007, quando Geoffrey Robertson escreveu no jornal esquerdista The Guardian (única fonte da mídia brasileira sobre Inglaterra) o artigo We should say sorry, too, no qual Robertson lembrava que o passado fabiano era o da eugenia. Como não apenas os fabianos eram eugenistas, e como hoje é fácil fugir do debate dizendo que aborto nada tem a ver com eugenia, o debate não prosperou muito.
João Doria, apesar de ser globalista sem nem saber o que é globalismo (qualquer um que acredite e comungue dos valores da grande e velha mídia o é), é contra o aborto. Tampouco parece interessado em um plano de aumento de impostos e gestão econômica dirigida da economia que aumente o tamanho do Estado. Se Serra quer um “Estado controlador”, Doria é chamado de “CEO de São Paulo S/A“, não parecendo ter uma ideologia muito clara além disso. É difícil crer como alguém contra o aborto e pesados impostos na habitação possa ser um “socialista fabiano”. Mas é facílimo perceber como ele acredita no que os globalistas de viés mais liberal dizem.
Quando foi eleito, a professora brasileira Sonia Corrêa, da London School of Economics, na palestra Thinking Sexualities, Globalities and the Politics of Rights from an Interdisciplinary Perspective, utilizou Doria como exemplo da “onda conservadora” que tomava o Brasil após o impeachment, intensificada mundialmente com a eleição de Donald Trump. Os socialistas fabianos não parecem ir muito com a cara de Doria.
A dúvida que fica, sabendo-se que o que um político pensa ou acredita influencia bem pouco no seu agir histórico, é: quem daria as cartas num eventual governo Alckmin? E num eventual governo Doria? Qual é a capacidade de transcender as linhas partidárias, a Fundação Teotônio Vilela, o Instituto FHC etc? O New Labour de Tony Blair e o “reaganismo democrata” do Bill Clinton também eram privatizantes, pró-livre comércio, dentre outras coisas, mas isto basta? Para onde apontará a seta pós-governo olhando-se a longo prazo? São questões que precisam ser analisadas com seriedade.
A Fabian Society apresenta-se hoje mais como um think tank, tendo sérias reservas contra o ultra-radical Jeremy Corbyn, espalhafatoso e socialista da velha guarda. Mas seu método e propósito são claríssimos, mesmo em momentos distintos da história. Não é uma sociedade secreta, e tem membros em todo o mundo anglo-saxão, além de países como França e Espanha.
É importante conhecer seus inimigos com exatidão se se quer vencê-los. Do contrário, é fácil tentar destruir um Goldman Sachs com os argumentos que só atingiriam uma Petrobras. O que não deve acontecer são vidas perdidas lutando contra moinhos de vento em comentários de Facebook, que aos olhares mais apressados e confusos parecem gigantes.
Com colaboração de Filipe G. Martins, nosso mestre em assuntos anglófonos.
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