quinta-feira, julho 13, 2006


No país de Bia Falcão
Zuenir Ventura
Como cada vez mais as telenovelas refletem o mundo real, vale a comparação. No começo de 1989, às vésperas da primeira eleição para presidente pós-ditadura, a vilã Odete Roitman chocou o país com suas maldades e acabou sendo assassinada - por engano, mas foi. Quase dezoito anos e quatro eleições presidenciais depois, nada de ruim aconteceu à megera Bia Falcão, que está curtindo Paris rica e solta, com seu garotão de programa.
A rigor, nem precisaria ter fugido. Se ficasse por aqui, mesmo que pudesse vir a ser condenada, poderia seguir o exemplo de alguns colegas de crime como o jornalista Pimenta Neves, assassino confesso de sua namorada, e o fazendeiro Regivaldo Pereira Galvão, mandante da morte da irmã Dorothy Stang. Era só contratar um advogado especializado em recursos e chicanas, entrar com um pedido de hábeas-corpus no Supremo Tribunal Federal, ser solta e aguardar em liberdade.
No máximo, haveria alguns protestos da sociedade, se houvesse. A atriz e cidadã Fernanda Montenegro, que acredita em ética, ficou chocada com a tolerância do público em relação às vilanias de seu personagem. É a mesma "aceitação cínica" a tudo o que está acontecendo aqui fora. "Há um amaciamento no mau-caratismo. Seja mau caráter, seja herói", ela constatou, e isso aparece claramente nas discussões que a Globo promove com grupos de espectadores para estudar suas reações.
Ao contrário de alguns anos atrás, a grande parte deles não valoriza mais a retidão de caráter e os bons sentimentos. O certo é se dar bem a qualquer preço. "Os personagens bons eram os mais queridos", disse o autor de "Belíssima", Silvio de Abreu, ao repórter Marcelo Marthe. "Nessa última pesquisa, eles foram considerados enfadonhos por boa parte das espectadoras." Silvio acha que essa "esperteza desonesta" tem tudo a ver com os escândalos recentes da política. "As pessoas querem é subir na vida, ganhar dinheiro, e dane-se o resto." Exatamente como fazem muitos dos chamados representantes do povo.
Na época de Odete, lutava-se contra uma grave crise ética que, esperava-se, jamais se repetiria, muito menos que se agravaria. Denunciando a hipocrisia, Cazuza exigia: "Brasil, mostra a tua cara." O país acabou mostrando não só a cara como as entranhas apodrecidas. Num primeiro momento, houve nojo, repulsa, indignação. Governo e Congresso prometeram cortar na própria carne a parte podre. Hoje essa banda ameaça voltar pelo voto popular, cinicamente. O país da heroína de Gilberto Braga era hipócrita, e a hipocrisia, como se sabe, é a homenagem envergonhada que o vício presta à virtude; o de Bia Falcão é cínico, sem vergonha, pois sabe que nada de ruim lhe acontecerá. Nele o crime compensa.
O Globo (RJ) - 12/7/2006
----Estranho que Fernanda Montenegro interpretando um papel tão negativo seja a musa dos comerciais do Banco do Brasil.

Seria por causa de apoios passados, atuais e futuros à reeleição?

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